A partida de abraão, por József Molnár
Jorge Pinheiro
Ao longo da história, vários foram os homens e mulheres que,
em diversas épocas, influenciaram negativa ou positivamente as sociedades em
particular e a humanidade em geral. Enumerá-los tornar-se-ia fastidioso porque
a lista seria extensa. Emparceirando-os, verificaríamos, contudo, que deles
apenas meia dúzia se sobressairia de quem se pudesse dizer que a sua influência
se tornou extensiva a todo o mundo, deixando uma marca que atravessou séculos e
continentes e que perdura ainda hoje. Se pedíssemos a alguém que enumerasse o
nome de cinco personalidades que em seu entender mais influenciaram o curso da
humanidade não deixaria de indicar o dos fundadores das principais religiões
(Sidarta Gautama, Moisés, Zoroastro, Jesus Cristo, Lao Tzé, Muhamad), o de
grandes guerreiros ou descobridores (Gengis Cão, Alexandre Magno, Júlio César,
Marco Pólo, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo), o de grandes pensadores,
cientistas ou artistas (Sócrates, Platão, Einstein, Karl Marx, Mahatma Gandhi,
Leonardo da Vinci, Beethoven) ou qualquer um dos muitos políticos que deixaram
a sua marca indelével na história da humanidade. Não estaremos, contudo, talvez
longe da verdade se arriscarmos afirmar que poucos citariam o nome de Abraão
entre esses cinco.
E, no entanto, passados quase cerca de 40 séculos desde que
ele empreendeu a sua caminhada histórica, saindo de Ur da Caldeia rumo a um
destino que apenas pela fé conseguia vislumbrar e, talvez, deficientemente
compreender, ainda hoje continuamos a ser influenciados de forma perene e
constante por essa sua decisão, a ponto de podermos afirmar, sem forçar a
realidade, que ele condicionou o devir de toda a humanidade. A sua decisão de
obedecer à voz divina alterou para sempre o curso da humanidade e ainda hoje
continuamos a sentir a sua influência. É verdade que genericamente Abraão é
encarado apenas no quadro do universo religioso para isso contribuindo o facto
de os seguidores dos três grande monoteísmos actuais o considerarem como pai
fundador e alicerce das respectivas fés. É verdade que Abraão, considerado
patriarca por todos quantos se lhe sentem devedores, foi movido por uma fé que
podemos considerar de base e consistência religiosa. Mas não menos verdade será
afirmar que, afinal, todos neste mundo, crentes e não crentes, são de uma forma
ou outra seus filhos ou descendentes.
A história de Abraão vamos encontrá-la, com riqueza de
pormenor no maior best-seller de toda a humanidade e jóia preciosa do universo
sapiencial – a Bíblia Sagrada, mais concretamente no Génesis, entre os
capítulos 12 e 25. Esses 14 capítulos retratam quadros de magnífica beleza e
profundos ensinamentos cuja densidade está longe de esgotada.
Sabemos que Abraão vivia na opulenta cidade de Ur da Caldeia,
cidade que rivalizava em grandeza e importância com a grande Babilónia, sendo
considerada na altura (1940 a.C.) a mais importante urbe da região. Aos 75
anos, passa por uma experiência que irá modificar para sempre a sua vida e o
curso da humanidade. Pouco sabemos de Abraão até então. Mas sabemos que vivia
numa cidade opulenta, numa sociedade politeísta, num mundo em que, para
apaziguar os caprichos das divindades, muitas vezes era necessário sacrificar a
vida humana. Muito provavelmente viveria sem problemas de subsistência. Talvez
uma das poucas tristezas que o afligisse fosse o facto de sua mulher Sarai ser
estéril e, por essa razão, o seu nome não seria propagado após a sua morte
entrando por isso no oblívio da memória colectiva.
E é nesse ambiente que Deus o chama e lhe faz uma promessa que
a partir de então será a sua razão de existir: “Sai-te da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai, para a
terra que eu te mostrarei. E far-te-ei
uma grande nação e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome e tu serás uma
bênção. E abençoarei os que te
abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas
as famílias da terra”. Obediente, Abraão deixa o conforto, o sossego e a
reputação e parte. Deixa a segurança do adquirido e parte rumo ao desconhecido,
fundamentado apenas numa promessa cujo único garante é o Deus eterno a quem
fica ligado pelos laços da fé que vai crescendo e fortalecendo-se à medida que
se entrega à obediência de quem o chamou. Conhecemos o resto da sua autêntica
odisseia que resumimos de seguida: após renovar-lhe a chamada e a promessa de
um filho, apesar da esterilidade de Sarai e da idade avançada de Abrão, Deus
concede-lhe um filho, Isaque, depois de mudar o nome ao casal e de instituir a
circuncisão e não sem que antes Abraão tivesse gerado Ismael da sua escrava
Agar. Após a morte de Sara, Abraão volta a conceber seis outros filhos da
concubina Quetura. Pelo meio, a destruição de Sodoma e Gomorra, o sacrifício
não consumado do filho Isaque e o episódio em que, perante Abimeleque, Abraão
nega que Sara fosse sua esposa.
Centremo-nos no conteúdo da promessa feita por Deus a Abraão e
que ele transmite como herança a todos os seus descendentes. Nela há 3
elementos centrais: terra (Sai-te da tua terra e da tua parentela e da
casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei), semente (E far-te-ei uma
grande nação e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome e tu serás uma bênção)
e bênção (E abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra). Esta
promessa, que se cumprirá na descendência de Abraão, dá origem a uma nova
relação com a divindade, ou com a transcendência, se assim o quisermos,
desconhecida da sociedade de então. Para além de ser um Deus único,
transcendente e pessoal, o Deus de Abraão é um Deus que se relaciona com a sua
criação através de pactos, que Ele honra e aprofunda, na medida da obediência
do homem.
A Abraão, por seu lado, é exigido que se entregue à revelação
de um Deus que se auto-revela e siga, passo a passo, em obediência
comprometida, o caminho que se lhe vai abrindo no cumprimento do respeito mútuo
pelo pacto estabelecido entre Deus e o Homem e que influenciará não só o
momento presente, mas todas as gerações posteriores que receberem como sua
herança a promessa abraâmica.
A terra passa a
estar indissoluvelmente ligada à descendência de Abraão. Compulsando os pactos
subsequentes que Deus vai estabelecendo com o Seu povo, verificamos que a
relação do homem com a terra é a de um mordomo que, em nome do seu senhor, a
torna produtiva, zelando e velando por ela, respeitando a sua integridade. A
terra continua a ser de Deus, mas o Eterno coloca-a à disposição do Homem para
nela este se frutificar e frutificá-la. E de facto, nos pactos posteriores,
encontramos toda uma série de disposições que realçam esta tripla inter-relação
– terra produtiva e respeitada, mansão do homem e reflexo e reflector da glória
de Deus.
A semente ou
descendência conhecerá a grandeza e erguer-se-á não como pedinte ou uma massa
amorfa sem rumo, mas como sociedade organizada, disciplinada, com um programa
bem definido de acção, em que a dignidade humana conhece um novo paradigma e em
que a relação com o transcendente faz parte integrante do viver humano. Disso é
reflexo o episódio do sacrifício não consumado de Isaque no monte Moriá. Filho
prometido, filho da impossibilidade, a vida de Isaque é requerida pelo próprio
Deus que permitiu a sua existência. Para além das várias lições que o episódio
nos ensina, podemos destacar duas: Deus não se compraz com sacrifícios humanos
e Deus exige confiança e obediência sem restrições a quem O aceita como
presente na sua vida. Numa sociedade que utilizava o sacrifício humano para
satisfazer a divindade, este episódio constitui uma ruptura definitiva do
paradigma que encara o homem como descartável em nome do ter em preferência
sobre o ser, em nome até de uma divindade supostamente clemente e
misericordiosa. Nessa semente (ou descendência) contemplada na promessa
abraâmica, o transcendente está também presente de forma visível e palpável e
disso são reflexo dois episódios da vida de Abraão – a instituição da
circuncisão e a mudança de nome do patriarca e sua esposa. A circuncisão, acto
realizado no próprio corpo do crente no ponto fulcral da procriação masculina realça
o facto não só de que o nosso corpo deve reflectir ele também a relação com a
divindade, como ele próprio Lhe pertence. A mudança do nome é também
significativa. Numa cultura em que o nome reflecte a própria pessoa e em que,
em última instância, acaba por ser a própria pessoa, este episódio indica que a
relação com Deus exige um abandono das nossas referências exclusivamente
imanentes, exige uma renovação, uma transformação apenas possível pela acção
divina interveniente no nosso viver. Abraão deixa de ser Abrão (pai da altura)
para ser Abraão (pai de uma multidão, sendo sintomática esta intercalação de um
som aspirado indiciador do sopro do espírito divino na natureza humana) e Sara
deixa de ser Sarai e passa a ser Sara (princesa). E de novo, numa sociedade em
que a mulher era considerada propriedade do homem e como ser sem alma, esta
elevação da sua dignidade é sintomática.
No terceiro elemento da promessa/herança abraâmica, a bênção, temos toda uma teologia e
programa de acção. A lei da causa e do efeito presente em todas as relações do
homem que se movimenta numa tripla dimensão – consigo próprio, com o seu
semelhante e com a divindade. Um apelo não apenas à obediência, mas à
responsabilidade individual e colectiva, com uma origem inequívoca e insubstituível.
Nos pactos subsequentes que complementam esta promessa divina, sem negar a
ligação íntima e intrínseca entre causa e consequência, entre obediência e
transgressão, a tónica é colocada indiscutivelmente na bênção resultante da
actuação em obediência alicerçada e avalizada pela fidelidade divina. A bênção,
o favor, a graça, a misericórdia de Deus tornam-se extensíveis a todos quantos
entrarem em contacto com o recipiente da promessa divina. A tónica é colocada
na bênção e não na maldição, porque Deus não tem prazer na destruição da sua
criação, conforme ecoa o profeta Ezequiel (33:11, “A Bíblia para Todos”) –
Cada um destes tipos de filhos
representa um sector da humanidade com características próprias e todos em
conjunto constituem a humanidade na sua totalidade. Todos eles são herdeiros da
herança deixada por Abraão à sua posteridade. A herança é a mesma, mas a forma
como ela é vivida, transmitida e em alguns casos imposta, depende da condição
em que cada filho se insere, condicionando toda a sua cosmovisão, o seu
estar-no-mundo, o seu estar-com-o-outro.
Os filhos da promissão assumem o
seu estatuto de filhos legítimos e é-lhes tentador considerarem-se os únicos
com direitos absolutos à herança, numa atitude e visão legalista da sua
condição que os faz considerarem-se os eleitos entre os eleitos, a nata da nata
da sapiência e da resistência. Um filho da promessa sabe que é filho e
comporta-se como filho com uma atitude de temor reverencial para com o pai.
Os filhos da escravidão não
conseguem eximir-se a uma mentalidade de fatalismo que a curto ou longo prazo
os reduz a uma posição de subserviência, de inferioridade, de perseguidos pelos
que se consideram senhores. Um filho de escrava nunca pode encarar o senhor
como pai, mas sempre como senhor, como dominador, cuja vontade final é
desconhecida do filho.
Os filhos da solidão não conseguem
escapar à angústia do niilismo, ao desespero de quem encara e considera a vida
sem sentido. Um filho da solidão considera-se sempre resultado de uma segunda
opção em que a razão de viver não é o amor mas a necessidade. Um filho da
solidão encara o pai como ausente ou não existente.
Os filhos da adopção sabem que são
filhos não por direito de primogenitura, mas em resultado de um acto de amor,
de entrega e de dedicação. O filho da adopção sabe que não merece o estatuto de
que goza e que lhe foi outorgado por um acto voluntário de entrega a ele
estranho. O filho da adopção conhece o sabor da gratidão e encara o pai como
aquele que tudo fará para o salvaguardar.
Para além da herança comum, cada
um destes grupos de filhos depende da palavra, reduzida a livro, que se torna
repositório de toda a sua práxis e ethos. E essa palavra, que reflecte a
condição do filho, perpetua não apenas a herança, mas a forma como cada um a
encara, a vive e a transmite.
A herança, repetimos, é a mesma,
mas a forma como a vivemos, a transmitimos e por ela nos inter-relacionamos
depende da interiorização da nossa condição face ao pai de quem somos
herdeiros. Essa condição condiciona a nossa cosmovisão, condiciona a forma como
vemos o outro, condiciona o nosso modelo de sociedade, condiciona a nossa
relação com o transcendente. Cabe a cada um de nós decidir qual o nosso
estatuto de filho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário