sábado, 22 de maio de 2010

Passar por casa

Escrita Criativa/Memórias de um poeta

Chegou a casa como mobilizado.
Não acrescentava nada se tivesse andado com a cabeça às voltas, pensamentos românticos, ideias depressivas, mesmo se agendasse suicídios wertherianos, nem sentir-se um herói, embora se sentisse solene e sozinho.
As ordens de serviço, mesmo feitas por amanuenses invisíveis e, como tal, insensíveis, não costumavam errar.
Podiam, em certos casos, levar tempo a digerir. – Condecorado com a medalha de cobre de bom comportamento- disse uma vez a Ordem e ele sabia que tinha tido vontade de matar uns quantos tipos.
Nessa manhã, levemente verde porque os jardins da Base brilhavam sob o sol, ouvira como um hábito,mas sempre no meio do alvoroço geral, que havia nomeações. Depois, confirmou-o, tirou tudo a limpo, ao ler o seu nome.
A guerra colonial precisava de técnicos para operar nos aviões de combate.África era longe, mas naquela hora a colónia distante apertou-lhe o coração. A guerra era longe, mas agora entrava em turbilhão nos seus pensamentos. Porque antes teria que passar por casa e anunciar que o mandavam para um posto longínquo.
A sua responsabilidade agora era diferente, a sua aura junto dos companheiros transmudara-se, era um mobilizado – Deixa lá, para a próxima vamos nós.
No entanto, o seu primeiro acto de heroicidade, teria que passar por convencer a família, a noiva, alguns amigos de juventude, de que não fora ele que se auto-propusera.
Alguém tinha decidido por si, um deus ex-machina tinha decretado.Chegou a casa, como mobilizado, e disparou, sem rodeios, – Vou para Angola. E isso soou como uma bomba.
Os preparativos para a partida, nos dias e nas semanas seguintes, não podiam desmentir a realidade, mas bem no fundo de si mesmo o coração recusava-se a acreditar. E passou esse tempo sozinho com o seu coração, embora sempre rodeado de pessoas.
Não se olhou ao espelho, não fez poemas, se fosse poeta, não teceu filosofias, se fosse filósofo, não ergueu moralidades, se fosse um moralista, nem sequer sentiu vontade de matar uns quantos tipos, nem reclamou a Deus.Nos dias que se seguiram, continuou a fazer o seu trabalho, e, em casa, ouvia – Se calhar foste tu que quiseste ir. Ainda hoje, passados 40 e alguns anos, quando se fala desse dia, dizem-lhe – Sempre foste muito lírico, não nos admirava nada que tivesses sido tu a pedir.
18-5-2010
João Tomaz Parreira

Um comentário:

Anônimo disse...
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