As rotinas mantêm-se inalteráveis.
Todos os dias me ausento de casa, quando a hora sexta está perto, debaixo dum sol escaldante, em direcção à fonte de Jacó para me abastecer de água.
É o único horário que me permite sair sem ser atingida pelo fogo cruzado das injúrias e blasfémias que este povo insolente, provocador e hipócrita me dispara. Um povo que, encabeçado por desprezíveis auto-denominados juízes, decreta as suas sentenças, diante das rés deliberadamente silenciadas.
Nunca ninguém se atreveu a perguntar-me se precisava de auxílio. Nunca ninguém me estendeu a mão quando caída em desgraça. Nunca ninguém se preocupou em saber quais os motivos do meu infortúnio. Nunca ninguém quis saber se era justo ou injusto este meu penar, nunca! Mas sempre estiveram, e estão, prontos a direccionar os seus dedos acusadores e as suas línguas afiadas contra mim. Julgam-me como se me conhecessem, mas desconhecem-me por completo, a mim e à minha história de vida. E eu também não estou interessada em divulgá-la mas irrita-me profundamente que sejam juízes de uma causa alheia. E tudo porquê? Porque sou mulher!
Não lhes importa os acontecimentos que levam um casamento a ruir, não lhes interessa saber o que correu mal, as origens de semelhante desfecho nem quem foi o primeiro quebrar os votos do matrimónio. Não, isso não lhes interessa, não é importante, porque as culpas recaem sempre sobre a mesma vítima, a mulher!Como tal, e relativamente ao meu caso, a culpa foi, e continuará a ser minha e ponto final.
É assim que se tratam as mulheres de Samaria… Nascemos com o destino traçado, nascemos para estarmos sujeitas às vontades e aos quereres do sexo oposto. Os homens querem, podem, mandam e comandam enquanto nós, as mulheres, só temos de lhes obedecer, calando-nos, subjugando-nos, anulando-nos e ainda devemos dar muitas graças a Jeová pelo marido que temos. Se ele é bom ou mau, não importa. Mas eu recuso-me a aceitar esta prepotência tirânica. Recuso-me a deixar-me dominar por tamanha injustiça. Não é isto que quero e espero de um marido, de um companheiro de vida. Quando me entrego é por completo, quando me dou é por inteira. Foi assim que agi em cada enlace. Busquei em todos eles, desesperadamente, a felicidade e entreguei-me sem reservas. Mas o retorno não foi o esperado. Fui desprezada, humilhada, maltratada e… violentada. Destroçada, virei a mesa por cinco vezes! Fiz aquilo que muitas mulheres querem e sentem vontade de fazer, mas coitadas… se o fizeram receberão o mesmo tratamento que eu.
É por isso que se acobardam e anulam, preferindo sofrer em silêncio. Mas eu não compactuo com violência nem maus tratos, recuso-me a ser usada como um tapete, ou um objecto. Se o Senhor dos meus pais Isaque e Jacob exigisse de nós essa submissão não nos teria dado boca, coração, inteligência, sentimentos…Porque requerem os homens de nós, um direito que não lhe é devido? Porquê? Porque a sociedade está dominada por eles e pelas leis que eles próprios elaboram em seu benefício. E sendo assim está tudo dito!Mas eu não me conformo com isso… prefiro ser apontada na rua com hostilidade do que ser olhada com piedade. Não suporto que tenham pena de mim, não o admito se quer!Só há uma coisa capaz de me dominar, só uma coisa pode refrear estes meus ímpetos e transformar o meu carácter, só uma única, o amor… só o amor e nada mais.
Não anulo a minha cota parte de culpa em todos estes fracassos. Fui ingénua e tonta. Caí na cilada de um amor fingido, escorreguei diante de elogios, galanteios e palavras doces. Paguei caro esse meu erro. Duplamente caro. Procurava em cada companheiro, um amigo que não achei. O sinónimo de amigo é tão extenso e tão imenso… É lamentável que muito poucos o conheçam. Mas nenhum dos meus anteriores infortúnios me fez perder o amor-próprio, a dignidade ou a vontade ser feliz.
Sofro por viver paredes meias com um povo que se diz religioso, temente a Deus mas não manifesta o amor pelo próximo, em vez disso difama-o. Um povo que bate com a mão no peito e se diz ser servo do Deus Altíssimo, mas na realidade tudo não passa de um disfarce para omitir a podridão que lhes vai na alma. Falsas paredes caiadas de branco. Podem acusar-me de mundana ou adúltera mas jamais de dissimulada ou maliciosa.Tudo fiz com o objectivo de ser abençoada, não o consegui, paciência.
Sob o sol escaldante na minha cabeça, apesar do cântaro, estes pensamentos pesam e tornam mais dolorosa a caminhada; nunca tenho outros quando me dirijo ao poço.
Mas… que fará a esta hora um homem assentado junto ao poço? Ainda para mais… judeu.Sim, é judeu, as vestes e o semblante não deixam dúvidas.
Hum... o melhor é dar seguimento ao que me trouxe aqui e voltar rapidamente a casa. Não existe comunicação entre judeus e samaritanos portanto…
- Dá-me de beber.
Como ousa ele dirigir-me a palavra? Deve estar sequioso, e com o calor que se sente a esta hora não me admira, ainda assim…
- Perdão? Como sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?
- Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva.
Que diz ele? Dar-me-ia água viva? Mas como?- Senhor, tu não tens com que tirar a água e o poço é fundo, onde pois tens a água viva para me dar? És tu maior que o nosso Pai Jacó, que nos deu o poço, de onde também bebeu ele, seus filhos e seu gado?
É um judeu estranho que fala de forma estranha mas não me parece que esteja a ironizar quando fala comigo. Há algo nele que me atrai e transmite confiança…
- Qualquer que beber desta água tornará a ter sede. Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.
Se for verdade o que me diz, acabaria de vez com esta rotina diária de vir ao poço buscar água. Terminaria este tormento.
- Senhor, dá-me dessa água, para que não tenha mais sede, e não necessite de vir mais aqui tirá-la.
- Vai, chama o teu marido, e vem cá. O meu marido? Mas porque tenho de chamar agora o meu marido? Ah já sei… sou mulher… o eterno problema.- Não tenho marido – agora vai dizer-me que não tenho direito a essa água.- Disseste bem: Não tenho marido; porque tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido, falaste a verdade.
Eu sempre falo a verdade mas, como pode ele saber que já tive cinco maridos e que o companheiro que tenho presentemente não é meu? - Senhor, vejo que és profeta – só um profeta possui tamanho conhecimento. Vou aproveitar para o questionar sobre o que os nossos pais nos ensinaram, e que tanto os judeus contestam. Nunca tive a oportunidade de esclarecer as minhas dúvidas, limitei-me a aceitar o que me diziam.
- Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis ao Pai. Vós adorais o que não sabeis: nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é em que os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem...
Quanta sabedoria… reconheço que sabe bem do que fala. O que vejo a minha volta? Muita religiosidade, muita tradição, muitos usos e costumes, mas a verdadeira fé em Deus e a verdadeira adoração onde estão? - Senhor, eu sei que o Messias, chamado de Cristo, vem, e quando vier irá anunciar-nos e esclarecer-nos acerca tudo – sempre foi essa a minha certeza.
- Eu o sou, eu que falo contigo.
Estou atónita, não pode ser. O Messias que todos aguardamos está agora diante de mim? - Oh meu Senhor, a minha alma está gozosa e maravilhada. A sua voz propaga em mim uma acalmia imensa. Dele emanam paz, segurança, conforto e alegria. É inexplicável mas o meu coração está inundado pela mais pura felicidade! Uma felicidade sem igual.Vêm homens em direcção ao poço, não sei quem são, suponho que sejam seus amigos. A excitação invade-me e impede-me de fazer perguntas. Só penso em correr até Sicar e contar a todos quem encontrei. Largo o cântaro e uma pressa diferente em regressar à cidade, apossa-se de mim. Recordo-me agora que não me despedi, nem lhe agradeci, pelos menos verbalmente não me lembro de o ter feito mas os meus olhos, sim os meus olhos, devem ter-lhe expressado toda a minha gratidão. A minha ansiedade é tanta que o caminho parece não ter mais fim. E os pensamentos de há pouco… aqueles que emergiram na minha mente perderam todo o valor. Cinco casamentos falhados… como me pesam agora, Santo Deus.Talvez eu devesse ter me empenhado mais. Talvez eu não devesse ter sido tão afoita na defesa daquilo que pensei serem os meus direitos. Talvez eu pudesse ter me silenciado e assim evitado algumas situações… talvez. Oh meu Deus agora é tarde, e já não posso remediar o passado. Tenho padecido muito a conta das decisões levianas que tomei. Em relação ao presente tudo é diferente, Há muito que posso, preciso e vou fazer. Preciso colocar a minha vida em ordem. Preciso definir a minha situação actual, preciso… Mas antes, antes de tudo vou relatar ao meu povo o encontro que tive junto ao poço. Vou contar-lhes que encontrei um homem especial, que me disse tudo quanto tenho feito. Sei que de início não irão acreditar em mim, irão questionar-me e por em causa tudo o que lhes digo, mas a verdade é que eu encontrei a fonte. Encontrei a Cristo!
Florbela Ribeiro®
Via Portal Evangélico da AEP
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