sábado, 8 de abril de 2023

A ESPERANÇA DA RESSURREIÇÃO À LUZ DA ESCATOLOGIA DE PAULO - Arides Leite Santos



 Arides Leite Santos


Paulo escreveu aos crentes da igreja de Corinto para lembrar o autêntico Evangelho que lhes havia pregado, deixando claro que não fora outro senão este: segundo as Escrituras, Cristo morreu pelos nossos pecados, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia. Depois de ressuscitado, apareceu a Pedro e depois aos doze apóstolos. Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma vez, depois, foi visto por Tiago, e depois, por todos os apóstolos. Por último, depois de todos, foi visto também por ele (1Co 15. 3-8).
Entre aqueles homens e mulheres que haviam crido no Evangelho através da pregação de Paulo, alguns parecem ter voltado atrás, afirmando que não há ressurreição de mortos (1Co 15.12). Ao saber disso, Paulo intentou restabelecer a fé que lhes havia inculcado, reafirmando “que de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem” (1Co 15. 20).
Conforme Kent S. Knutson (2003, p. 65/66), os eventos ocorridos depois da morte de Jesus foram algo proveniente de Deus de tal maneira que a nossa história é afetada. Porém, essa compreensão pertence ao campo da fé, e como tal é inassimilável por aqueles que se orientam na vida a partir de outra perspectiva.
A pregação de Paulo a respeito da ressurreição, se corretamente apreendida, interpretada e ministrada, tem potencial para restabelecer a genuína fé e fortalecer a nossa paciência, enquanto aguardamos “a redenção do nosso corpo” (Rm 8. 23). Desde quando a ressurreição de Jesus aconteceu na história uma vez para sempre, inaugurou-se um tempo carregado de esperança escatológica. As Escrituras enunciam a promessa de que a vida do crente não será destruída pela morte. A certeza da vitória para os que “morrem em Cristo” é deduzida do fato acontecido de que o poder da morte já foi vencido pelo poder que ressuscitou a Jesus.
Segundo Moltmann (2005, p. 354/355), “o centro dos escritos neotestamentários é o futuro do Cristo ressuscitado que eles anunciam, prenunciam e prometem”. Para ele, a compreensão existencial, mundana, da mensagem contida naqueles escritos requer um “olhar na mesma direção em que eles olham”. As Escrituras “são testemunhos históricos abertos ao futuro, assim como são abertas ao futuro todas as promessas”.
A revelação de Deus no evento da promessa, uma vez compreendida pela missão da esperança, é capaz de transformar a realidade humana [que é fortemente permeada pela injustiça e pela falsidade] em um processo histórico de luta pela verdade e pela justiça. “O evento fundamental para o Evangelho” é “a ressurreição do Cristo crucificado e morto para a vida escatológica”, ou seja, “o acontecimento fundamental” é “a ressurreição dentre os mortos, que antecipa o escopo da história, a vinda da salvação futura, a vida, a liberdade e a justiça na ressurreição de Cristo” (MOLTMANN, 2005, p. 375/6).
Conforme as expressivas palavras de Oscar Cullman (2000, p. 189), Jesus passou pela morte em todo o seu horror, não somente no corpo, mas também na alma (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?!”). Para o cristianismo, que vê nele o redentor, ele deve ser “aquele que triunfa sobre a morte com a sua própria morte. Ali onde a morte é concebida como o inimigo de Deus, não pode haver ‘imortalidade’ sem uma obra ôntica de Cristo, sem uma história da salvação onde a vitória sobre a morte é o centro e o fim”.

1. O poder de ressurreição que venceu o poder da morte
“Onde está, morte, a tua vitória? Onde está, morte, o teu aguilhão? O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 15. 55-57). Paulo dirige-se aos crentes de Corinto para fazê-los entender que Cristo haverá de destruir todo principado, toda autoridade e todo poder; e que ele reinará até que haja posto todos os inimigos sob seus pés. De todos, o último a ser destruído é a morte (1Co 15. 24-26).
Conforme Schweitzer (2003, p. 88/9), Paulo concebe o Reino não como uma pacífica bem-aventurança, mas como uma luta com poderes angélicos. Estes, um após outro, serão vencidos por Cristo e seu povo, até que finalmente a morte também seja despojada de seu poder (1Co 15.23-28). Em consonância com a doutrina da redenção, o apóstolo espera que toda a natureza passe pela transformação da mortalidade para a imortalidade (Rm 8.19-22). A ressurreição geral e o julgamento imediatamente seguinte sobre todos os homens e sobre os anjos derrotados não são mencionados na série de eventos enumerados por Paulo em 1Co 15.23-28. Para Paulo, ambos estão inseridos no conceito geral sobre “o fim” (1Co 15.24), sendo supostos como bem conhecidos. O apóstolo alude de passagem aos eventos do fim, no decorrer da sua refutação ao conceito surgido em Corinto de que não existe ressurreição dos mortos. Na escatologia paulina, os poderes angélicos que devem ser julgados são vencidos gradualmente durante o Reino Messiânico, mas o ‘julgamento’, que segundo 1Co 6.3 é distribuído aos crentes que têm entrado na glória messiânica, “certamente ocorre naquele Último Julgamento”, no final do Reino.
Oscar Cullmann (2000, p. 191/2) assinala que a fé cristã na ressureição pressupõe o nexo que o judaísmo estabelece entre a morte e o pecado. A morte não é simplesmente algo natural querido por Deus, como concebia o pensamento grego, mas é algo anormal e contrário à natureza, oposto à intenção divina. A morte é uma maldição que afeta a criação inteira e só será vencida pela expiação do pecado, já que ela é o “salário do pecado”. Morte e enfermidade existem como consequência do estado de pecado em que se encontra toda a humanidade. “Toda cura é uma ressurreição parcial, uma vitória parcial da vida sobre a morte”.
A concepção judaica e cristã acerca da criação exclui totalmente o dualismo grego entre corpo e alma. “As coisas visíveis, corporais, são criações divinas no mesmo grau que as invisíveis. Deus é o criador do meu corpo. Este não é uma prisão para a alma, mas um templo; segundo as palavras de Paulo (1 Co 6.19), é templo do Espírito Santo”. O significado dos conceitos de corpo, alma, carne e espírito, na antropologia neotestamentária é um; na antropologia grega, é outro. Os autores do Novo Testamento servem-se dos mesmos termos que os filósofos gregos. Os conceitos que esses termos carregam, entretanto, recebem uma significação totalmente distinta para os autores cristãos, e compreendemos equivocadamente o Novo Testamento quando o interpretamos segundo o sentido grego. Muito dos mal-entendidos provém daqui (CULLMANN, 2000, p. 192/3).
Cullmann recorre à distinção entre os significados daqueles conceitos sobretudo para evidenciar o papel da carne (σάρξ) e do espírito (πνεμα) na antropologia cristã, que, “diferente da grega, está fundamentada na história da salvação”. Ele explica que uma das significações mais característica de Paulo é a de “carne” e “espírito”: “são dois poderes transcendentes ativos que, a partir de fora, podem entrar no homem, porém pertencem tanto um como outro ao homem em si”. Para Cullmann (2000, p. 194/5), a carne é o poder do pecado que entrou no homem inteiro (corpo e alma) com o pecado de Adão. Está ligada substancialmente ao corpo de uma maneira mais estreita que ao homem interior. E assim é porque, antes da queda, a carne tomou posse do corpo. O Espírito é o antagonista da carne, não como uma doação antropológica. É um poder dado ao homem que lhe vem de fora. É o poder criador de Deus, a grande força vital, o elemento de ressurreição, assim como a carne é, pelo contrário, o poder da morte. Na antiga aliança, o Espírito só se manifesta fugazmente nos profetas. Depois de Cristo, e por Sua morte, a própria morte sofreu um terrível golpe, e por Sua ressurreição este poder de vida atua em todos os membros da Igreja de Cristo.
Segundo Atos 2.16, “nos últimos dias” o Espírito será derramado em todos os homens. Esta profecia de Joel se realiza no Pentecostes. Corpo e alma serão libertados do poder mortal da carne pelo poder da vida do Espírito. A transformação do corpo carnal em corpo de ressurreição acontecerá no momento em que toda a criação for criada de novo pelo Espírito Santo, e então a morte já não existirá. “A substância do corpo já não será carne, mas Espírito”. “[...] a ressurreição do corpo, em um novo ato criador que transforma o universo, não pode sobrevir no momento da morte individual de cada um, mas no fim dos tempos”. Há de ser assim porque a ressurreição do corpo “está ligada ao drama da salvação”, que se desenvolve no tempo, por causa do pecado. “Desde que o pecado é considerado como a origem do domínio da morte sobre a criação divina, a morte e o pecado devem ser vencidos” (CULLMANN, 2000, p. 195/197).
Cullmann diz que Jesus se rendeu ao domínio da morte, expiou o pecado e assim venceu a morte. Acerca da fé na vitória de Jesus sobre a morte, ele narra:
A fé cristã anuncia que Jesus fez isto e que ressuscitou em corpo e alma antes de haver estado real e completamente morto. Anuncia que a partir de então atua o poder da ressurreição, o Espírito Santo. O caminho está livre! O pecado está vencido, a ressurreição e a vida triunfam sobre a morte porque a morte não era mais do que a consequência do pecado. Deus realizou antecipadamente o milagre da nova criação que esperamos para o fim. De novo, criou a vida, como no princípio. O milagre aconteceu em Jesus Cristo. Ressurreição não somente no sentido de um novo nascimento do homem interior cheio do Espírito Santo, mas ressurreição do corpo. Criação da nova matéria, de uma matéria incorruptível. Em nenhuma parte deste mundo há uma matéria de ressurreição nem corpo espiritual: somente em Jesus Cristo. (CULLMANN, 2000, p. 197).
Louvando-se em Romanos 6.3 e ss.; João 3.3 e ss., Cullmann (2000, p. 206/7) assevera que o cristão privado do corpo pela morte, antes já havia sido transformado, durante sua vida, pelo Espírito Santo, e tomado pela ressurreição, se é que tenha sido realmente regenerado por Ele, em vida. O Espírito Santo é um dom que se preserva ao morrer. O cristão falecido o mantém, ainda que durma e espere a ressurreição do corpo, único fato que lhe conferirá vida plena e verdadeira. No estado intermediário, para aqueles que “morreram em Cristo”, a morte perdeu tudo o que tinha de terrível, pois sem a presença da carne o Espírito Santo lhes aproxima mais de Cristo, de sorte que os mortos “que morrem no Senhor a partir de agora” podem ser realmente chamados bem-aventurados (Ap 14.13). Por isso o apóstolo escreve aos romanos: “vivamos ou morramos, somos do Senhor” (Rm 14.8) e “quer estejamos acordados, quer dormindo, vivamos para ele” (1 Ts 5.10). Cristo é “Senhor de mortos e vivos” (Rm 14.9).
Cullmann (2000, p. 207/8) observa uma certa proximidade entre o Novo Testamento e a doutrina grega da imortalidade da alma, no sentido de que o homem interior, transformado, vivificado pelo Espírito Santo antecipadamente (Rm 6.3 s.), continua vivendo assim transformado, ao lado de Cristo em estado de sono. “Todavia, a diferença é radical: o estado dos mortos é imperfeito, de nudez, de sono, na espera da ressurreição de toda a criação, da ressurreição do corpo. Por outro lado, a morte subsiste como inimigo já vencido, embora ainda não destruído. Se os mortos, incluindo os que se encontram neste estado, vivem já perto de Cristo, isso não corresponde de maneira nenhuma a sua essência, à natureza da alma, mas sim à consequência da intervenção divina atuando de fora pela morte e ressurreição de Cristo, pelo Espírito Santo que já havia ressuscitado o homem interior por Seu poder milagroso durante sua vida terrestre, antes da morte. A ressurreição dos mortos é sempre objeto de espera, uma espera com a certeza da vitória, pois o Espírito Santo já habita no homem interior; posto que já habita em nós, transformará também um dia nosso corpo. Pois o Espírito Santo, força da vida, penetra tudo de maneira absoluta, não conhece nenhum limite, não se detém.
Ainda que já se encontre vencida, privada de sua onipotência (2 Tm 1.10), a morte não será aniquilada senão no fim dos tempos como o “último inimigo” (1Co 15.26; Ap 20.13). Então, somente o Espírito Santo transformará os corpos carnais em corpos espirituais (1Co 15.44). Esta será a nova criação, onde uma matéria de vida substituirá a matéria da morte. No presente, o Espírito renova a cada dia somente nosso homem interior (2 Co 4.16; Ef 3.16). O fato de que o Espírito Santo habite em nós, desde agora, é a garantia de que, no porvir escatológico, Ele vivificará nossos corpos mortais (Rm 8.11). (CULLMAN, 2000, p. 106).

2. O morrer e ressuscitar com Cristo
Segundo Cullmann (2020, p. 284/5), o batismo confere o Espírito como uma “ressurreição com Cristo”, porém, “antes do fim dos tempos nossa ressurreição é somente parcial: a transformação de nosso corpo carnal em um corpo espiritual permanece reservada ao futuro”. O Espírito Santo manifesta-se no presente como um “poder de ressurreição”. O fato de termos como fundamento a ressurreição de Cristo e de crermos neste ato salvífico nos habilita a entrar atualmente nos domínios do Espírito Santo e nos faz sabedores de que nos é permitido esperar pela ressurreição do corpo a ser operada pelo próprio Espírito que já habita em nós. “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do Espírito que em vós habita”, Romanos 8.11.
Oscar Culmman afirma categoricamente que “o batismo tem por efeito participar a cada um individualmente o Espírito Santo que havia sido derramado sobre toda a Igreja no dia de Pentecostes”. Ele ousa explicar como se dá essa participação: “Ao entrar na Igreja, o homem se coloca sob o efeito imediato do σωʺμα Πνευματιχόν [corpo espiritual]: “Em um só espírito fomos batizados para formar um só corpo” (1Co 12.13). Que corpo é esse? O teólogo alemão responde: “este corpo é o corpo glorificado de Cristo e assim o batismo faz com que, segundo o livro de Atos, onde os relatos do batismo não deixam de pôr em relevo essa participação, isso aconteça em certa medida imediatamente sobre nosso corpo”.  A ressurreição de Cristo tem consequências para o nosso corpo desde agora, na medida em que é tomado pela ação vivificadora do Espírito Santo, mas a sua transformação em corpo espiritual não se dará até que chegue o momento de todas as coisas serem criadas de novo (CULLMAN, 2000, p. 112 e 115).
Culmman (2020, p. 287) se diz convencido, à luz do Novo Testamento, de que os que “morrem em Cristo” estão junto dele imediatamente após a morte. Ele sustenta - forte na palavra de Jesus em Lucas 23.43 “hoje tu estarás comigo no paraíso” e na palavra de Paulo em Filipenses 1.23 “meu desejo é de partir para estar com Cristo” - que as expressões “estar com Cristo” e estar “no seio de Abraão” não têm o sentido de “receber o corpo espiritual”. Diz ele: “Pode-se conceber que estes mortos são mantidos com Cristo antes mesmo que seus corpos ressuscitem, antes mesmo que eles se revistam de um corpo espiritual”. No seu entender, esse parece ser o sentido da controvertida passagem de 2 Co 5.1-10. O estado de “nudez” criado pela morte, a inimiga de Deus, permanece um estado de imperfeição, mas Paulo sugere o horror que lhe inspira este estado pela certeza de que “nós já temos recebido as garantias do Espírito”.
É na referida passagem que o apóstolo, pensando no estágio intermediário dos cristãos mortos ou que deverão morrer antes do dia do julgamento, designa novamente o Espírito Santo como as “garantias” do fim do mundo (2 Co 5. 5). E não se trata aqui senão das garantias da ressurreição dos corpos no dia do julgamento, como indica a passagem já citada de Rm 8.11. O Espírito Santo é um dom inalienável e não se pode crer que para os crentes que estão mortos e para os que morrerão antes do fim dos tempos provisoriamente nada seja mudado, como se Cristo não tivesse ainda ressuscitado e o Espírito Santo não tivesse ainda operado entre os homens. A união com Cristo, estabelecida pelo Espírito Santo e já eficaz mesmo enquanto ainda estamos revestidos com nosso corpo de carne, essa união tornar-se-á mais íntima ainda – sem, todavia, tornar-se perfeita – quando nós estivermos despojados deste corpo de carne (CULMMAN, 2020, p. 287/8).
Em Apocalipse 6.9 e ss., as almas dos “que foram imolados por causa da Palavra de Deus” já se encontram “sob o altar”, ou seja, particularmente próximos a Deus. O que o Apocalipse diz acerca dos mártires vale, segundo o apóstolo Paulo, para todos os que estão “mortos em Cristo”. A contradição aparente entre as passagens que tratam da ressurreição dos corpos no fim dos tempos e as que mostram todos os cristãos “com Cristo” imediatamente após sua morte é resolvida desde que se reconheça que “estar com Cristo” não significa ainda a ressureição dos corpos, mas uma união com Cristo tornada mais estreita pelo poder de ressurreição do Espírito Santo. Os mortos vivem [aleluia!] também em um estado onde a tensão entre o presente e o futuro subsiste ainda. Estes também gritam: “Até quando?” (Ap 6.10). E sua esperança [dos mortos que vivem!] é na mesma proporção mais intensa pelo fato de já terem deixado seus corpos carnais (CULMMAN, 2020, p. 288/9).
Todos eles pertencem, assim como os vivos, no período presente, àqueles limites demarcados pela Ressurreição e pela Parusia - daí porque nem os mortos nem os vivos têm alguma vantagem (1 Ts 4.13 e ss.). À fé que os autores do Novo Testamento depositam na ressurreição, basta uma única certeza quanto a este estado intermediário dos mortos, qual seja: aquele que crê em Cristo, que é a ressurreição, “viverá, ainda que esteja morto” (Jo 11.25). A esperança da ressurreição está fundada sobre a fé, que, por sua vez, está fundada em um fato do passado, o fato central da linha da salvação e objeto do testemunho dos apóstolos: a ressurreição de Cristo. Também sobre um fato do presente: o poder de ressurreição do Espírito Santo já operante em todos os que creem no ressuscitado, poder que permanece inalienável até o fim dos tempos. Pois “aquele que ressuscitou a Jesus Cristo dentre os mortos dará também a vida aos nossos corpos mortais pelo seu Espírito”, Romanos 8.11 (CULMMAN, 2020, p. 289/290).

3. O modo de existência do ressuscitado com Cristo
Paulo afirma na carta aos romanos que, por meio do batismo, o cristão é sepultado junto com Jesus na morte para começar uma nova vida: “Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai assim também nós vivamos vida nova” (Romanos 6.4).
Conforme Schweitzer (2003, p. 119), a concepção de Paulo é que os crentes participam misteriosamente da morte e da ressurreição de Cristo, sendo arrastados para longe de seu modo ordinário de existência, e assim formam uma categoria especial de humanidade. Quando o Reino Messiânico despontar, aqueles que ainda estiverem vivos não são homens naturais como os outros. Diferentemente, são homens que de algum modo tem passado pela morte e ressurreição juntamente com Cristo, tornando-se participantes do modo de existência da ressurreição, ao passo que os outros homens passam sob o domínio da morte. Além disso, aqueles que “morreram com Cristo” não estão mortos como os outros estão, mas, por sua “morte e ressurreição com Cristo”, tornaram-se capazes de ressuscitar antes dos outros.
Para Schweitzer (2003, p. 121), a ressurreição de Jesus tornou manifesto que os poderes da ressurreição ou poderes do mundo sobrenatural já estavam operando dentro do mundo criado. Assim, aqueles que tinham discernimento não consideravam que a duração do mundo natural iria terminar com a vinda de Jesus em glória, mas concebiam o tempo interveniente entre a sua Ressurreição e o começo do Reino Messiânico como um tempo em que o mundo natural e o sobrenatural estão misturados. Com a Ressurreição de Jesus, o mundo sobrenatural já começou, embora ainda não tenha se tornado manifesto. No entender do nosso ilustre autor, que era médico e filantropo alemão, Paulo está preocupado em resolver o primeiro e mais imediato problema da fé cristã: a separação temporal entre a Ressurreição e o Retorno de Jesus Cristo. Pois, apropriadamente, a Ressurreição de Jesus, sua manifestação como o Messias e o começo do Reino Messiânico no qual está incluída a ressurreição e transformação dos eleitos, pertencem temporal e causalmente ao mesmo tempo (SCHWEITZER, 2003, p. 133).
Interpretando o conceito paulino de “corpo de Cristo”, Schweitzer (2003, p. 138/9) diz que os eleitos participam uns com os outros e com Cristo de uma corporeidade especial suscetível à ação dos poderes da morte e da ressurreição. Em virtude de estarem revestidos dessa natureza corporal, os eleitos tornam-se capazes de adquirir o estado de existência da ressurreição antes da ressurreição geral dos mortos. A inclusão nesta corporeidade favorecida não é realizada no momento do crer, pela fé como tal, mas pelo batismo, isto é, pelo ato cerimonial que possibilita o crente a entrar na “Comunidade de Deus” e entrar em comunhão, não apenas com Cristo, mas também com o restante dos eleitos. “Sem o batismo não há estar-em-Cristo!”.
Já para Jürgen Moltmann, o batismo concede ao crente participação na crucificação e morte de Jesus. Da ressurreição ele participa tão somente através da esperança. Na força do Espírito que ressuscitou a Cristo dos mortos o cristão pode tomar sobre si, em obediência, os sofrimentos ligados ao seu seguimento e assim esperar a glória futura. Da participação na ressurreição não se fala no tempo perfeito, mas no tempo futuro. Cristo ressuscitou e foi arrancado à morte, mas os seus ainda não estão arrancados da morte; tão-somente através da esperança eles têm participação na vida da ressurreição (MOLTMANN, 2005, p. 207).
Desse modo, o crente pode sentir a presença da ressurreição como esperança e promessa escatológica do futuro e não como uma presença cultual do eterno. No culto e no Espírito não lhe é dada uma participação plena no senhorio de Cristo, mas pela esperança é introduzido nas tensões e oposições da obediência e do sofrimento no mundo. Daí porque em Romanos 12.1ss. a vida diária é apresentada como a esfera do verdadeiro culto de Deus. “Ora, na medida em que o chamamento e a promessa indicam ao crente o caminho para a obediência corporal e terrena, o corpo e o mundo são colocados dentro do horizonte da expectativa da vinda do domínio de Cristo”. A Ressurreição de Jesus traz à existência um processo histórico escatológico com o propósito de realizar o aniquilamento da morte pelo domínio da vida e orientado para a justiça. Será um tempo em que Deus terá seus direitos reconhecidos em tudo e a criatura chegará a sua salvação. [...] A expectativa escatológica do domínio universal de Cristo sobre o mundo corporal e terreno traz consigo a percepção e a aceitação das contradições da cruz e da ressurreição. [...] A verdade universal pela qual a criatura chega a uma correspondência salvífica com Deus; a justiça universal pela qual Deus receberá seus direitos em tudo e em que tudo se tornará justo; a glória de Deus [...] tudo isso é colocado por Paulo dentro do horizonte da esperança no futuro, o qual a fé entrevê na ressurreição do crucificado (MOLTEMANN 2005, p. 207-211).

4. Como a Ressurreição de Jesus pode ser compreensível a nós hoje?
Segundo Moltmann (2003, p. 236), a “realidade da ressurreição” vem ao nosso encontro “como palavra de Deus, como querigma frente ao qual não podemos mais colocar a questão da legitimação histórica, mas o qual nos pergunta se queremos crer ou não”. Podemos compreendê-la “somente através do encontro direto e imediato na pregação presente, hoje sob o olhar do Senhor na obediência de hoje frente ao seu apelo absoluto, em que se abre a salvação para a atualidade”. Tal pregação “deve subjugar ‘nosso coração e nossa consciência’. Ela deve falar de sua ressureição de tal modo que esta não apareça como evento histórico ou mítico, mas como “uma realidade que toca nossa própria existência”.
A esperança cristã orienta-se para o Cristo já vindo, mas dele espera algo novo, ainda por acontecer. Espera o cumprimento e a realização: (i) da justiça de Deus prometida em todas as coisas, (ii) da ressurreição dos mortos prometida em sua própria ressurreição, (iii) do senhorio do crucificado sobre tudo, prometido em sua exaltação. Para a esperança cristã, “a não-redenção visível do mundo, que pode ser testada nos sofrimentos”, não abala a fé na vinda já verificada do Messias, mas constitui uma interrogação angustiante sobre o futuro do Salvador que já veio. É assim porque com Jesus a redenção foi posta em andamento, por isso os crentes gemem com toda a criação ante a não-redenção do mundo, enquanto esperam ver o cumprimento universal de sua atividade redentora e justificadora (MOLTMANN, 2003, p. 287/8).
Sobre a forma de comunicar o evento da Ressurreição de Jesus, partindo da premissa de que a sua compreensão só é possível em conexão com o seu futuro escatológico universal, Moltmann defende que a única forma adequada para a comunicação desse evento é o anúncio missionário a todos os povos, ou seja, através da missão consciente de estar a serviço do futuro prometido. “Somente a pregação missionária está à altura do caráter histórico e escatológico desse evento. Ela representa a forma de experiência da história correspondente à existência histórica e à expectativa histórica” (MOLTMANN, 2003, p. 241).

5. Considerações finais
Nosso propósito foi analisar o conceito de ressurreição do apóstolo Paulo, com foco em 1Coríntios 15, a fim de compreender o significado e a relevância dessa “realidade” para o homem e mulher dos nossos dias. Vimos que o evento acontecido da ressurreição do crucificado é o fundamento para a fé do cristão na sua própria ressurreição, no porvir; e que a vida do crente não será destruída pela morte, graças ao fato acontecido de que o poder da morte já foi vencido pelo poder que ressuscitou a Jesus.
A partir do ponto de vista de Oscar Culmann, pode-se vislumbrar a morte como o grande inimigo de Deus, e, conforme as suas palavras, “ela nos separa daquele que é vida e criador de toda vida”. O autor de “Cristo e o Tempo” percebe a ressurreição como “um chamado à vida por um novo ato criador de Deus”, e a considera um milagre, porque “o homem inteiro está realmente morto”, pois a vida que havia sido criada por Deus, a morte veio e destruiu. Jesus passou pela morte em todo o seu horror, em Seu corpo e em Sua alma, por isso o cristianismo o vê como o Redentor, aquele que triunfa sobre a morte com a Sua própria morte. “Ali onde a morte é concebida como o inimigo de Deus, não pode haver ‘imortalidade’ sem uma obra ôntica de Cristo, sem uma história da salvação onde a vitória sobre a morte é o centro e o fim”. Dessa perspectiva, pode-se vislumbrar alguma luz sobre o enigma da nossa ressurreição corporal. Culmann dá a entender que corpo e alma serão libertados do poder mortal da carne pelo poder da vida do Espírito. A transformação do corpo carnal em corpo de ressurreição acontecerá no momento em que toda a criação for criada de novo pelo Espírito Santo, e então a morte já não existirá. “A substância do corpo já não será carne, mas Espírito”.
Com Albert Schweitzer viu-se que os crentes participam misteriosamente da morte e da ressurreição de Cristo, sendo afastados do modo de existência comum, tornando-se algo como uma categoria especial de ser humano, participantes do modo de existência da ressurreição, enquanto os outros vivem sob o domínio da morte. Já aqueles que “morreram com Cristo” não estão mortos como os outros, mas estão como que habilitados a ressuscitar antes dos demais.
Moltmann, com base na doutrina paulina da união do crente com Jesus, sustenta a tese de que o batismo concede participação na Sua crucificação e morte, enquanto a participação na vida da ressurreição se dá tão-somente através da esperança. Para o autor de “Teologia da Esperança”, a não-redenção visível do mundo, incontestável diante dos sofrimentos, não é argumento contra a fé na vinda, já verificada, do Messias, mas antes uma interrogação angustiante entremeada nas orações do cristão sobre o futuro do Salvador que já veio. O fato de Jesus ser o Cristo já está dado como certo, e com ele a redenção foi posta em andamento. É por isso que o cristão geme junto com toda a criação ante a não-redenção do mundo e quer ver o cumprimento universal de sua atividade redentora e justificadora. Somente através do encontro direto e imediato na pregação presente, hoje sob o olhar do Senhor e na obediência de cada “hoje” ao seu apelo absoluto, oferta de salvação para a atualidade, é que se pode compreender a “realidade” da ressurreição. E a única forma adequada de comunicar o evento da Ressurreição de Jesus, partindo da premissa de que a sua compreensão só é possível em conexão com o Seu futuro escatológico universal, é mediante o anúncio missionário a todos os povos - através da missão comprometida em transmitir a fundada esperança no futuro prometido.
Sinto que agora Paulo quer falar a mim e a você. Com a palavra, o apóstolo dos gentios:
Penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós. Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade - não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu - na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo (Romanos 8:18-23. Bíblia de Jerusalém).

Referências

Bíblia Sagrada: Bíblia de Jerusalém. – São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia Sagrada. Bíblia nova versão internacional. Várzea Paulista/SP: Casa Publicadora Paulista, 2021.
CULLMANN, Oscar. Cristo e o Tempo [tradução Daniel Costa]. 2ª ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2020.
___________Das origens do evangelho à formação da teologia cristã [tradução Daniel Costa]. São Paulo: Fonte Editorial, s/d.
KNUTSON, Kent S. Quem é Jesus Cristo [tradução Luís Marcos Sander], 2ª ed. rev. São Leopoldo/RS: Sinodal, 2003.
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança: estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã [tradução Helmuth Alfredo Simon], 3ª edição. São Paulo: Editora Teológica, Edições Loyola, 2005.
SCHWEITZER, Albert. O misticismo de Paulo o apóstolo [tradução Paulo e Judith Arantes]. São Paulo: Fonte Editorial, 2003.

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