por Júnior Fernandes[1]
“[...] se a tua
vida foi ou não de desespero e, se, desesperado, tu ignoravas sê-lo, ou
soterravas em ti esse desespero, como um segredo angustioso, [...] que pode então importar o resto! Vitórias
ou derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te dá como seu, ela
não te conheceu ou, pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu
de desespero!”
Kierkegaard, O Desespero Humano
“Algum dia, não somente os meus
escritos, mas até a minha vida e todo complicado segredo do seu mecanismo serão
minuciosamente estudados”. Isso foi o que Kierkegaard previu para posteridade.
Em vida foi um pensador esquecido, a filosofia hegeliana ofuscava qualquer
brilho que cintilasse de um filosofar existencial. Hegel era moda à época. Não
havia espaço para preocupações existenciais; assim, Sören Aabye Kierkegaard foi
um filósofo solitário e esquecido de todos. Para fazer valer sua previsão,
financiou seu próprio pensamento com a herança que o pai lhe deixara. Sua Obra
compreende uma diversidade de escritos que permeiam o labirinto da alma humana:
angústia, desespero, fé, pecado, singularidade são alguns dos temas da verve
kierkegaardiana. Como nos diz France Farago, “sua obra é uma obra de iniciação
à vida, aos caminhos que se deve percorrer no tempo para encontrar o que ela
esconde de eternidade.”[2]
Dado esse multifário temático, tentaremos abordar aqui o ser no mundo, marcado
pelo desespero – a doença mortal, no dizer de Kierkegaard.
Para o filósofo dinamarquês, a
existência é como que uma escada, onde no primeiro degrau temos a fase
estética; no segundo, a fase ética; no último, a religiosa. São os estágios
existenciais, onde o existente pode
ou não galgar o degrau superior. Segundo Kierkegaard, o desespero acompanha o
homem em toda sua vida, isto é, em qualquer estágio em que ele se encontre; basta-lhe ser consciente de que é um
indivíduo, um ser existente no mundo. No entanto, no estágio religioso, há uma
possibilidade de cura para essa doença
mortal. “O homem em estado de desespero, verifica que se desespera não de
fatos contingentes, mas de si mesmo. O desespero kierkegaardiano constituiria,
portanto, o fato de o indivíduo ver-se confrontado com a vacuidade, o vazio,
que não pode ser preenchido pelos prazeres estéticos, nem pelas obrigações
éticas.”[3]
No estágio estético, o indivíduo
vive apenas o instante, ou seja, aquilo que traga prazeres imediatos. Aqui, ele
busca incessantemente fugir do tédio, do nada e, consequentemente, do vazio da
vida. Entretanto, quando tais prazeres
se acabam – ei-lo em desespero. Este, na verdade, já estava presente em seu
ser, só aguardava o momento de ressurgir e agravar os seus sintomas.
Entretanto, quando a crise passa e o desespero mitiga em estado letárgico,
volta o indivíduo, noutro instante, a viver – para usar uma tipificação
kierkegaardiana – como um Don Juan;
mal sabe ele que “em cada instante que desesperamos apanhamos o desespero”[4]. É
uma “bola de neve”.
Naturalmente um desesperado desse
naipe vive especulando as situações mais prazenteiras; seu mundo de
conveniências, apenas contribui para o não conhecimento de si; assim, vive em
um constante escapismo dos sofrimentos que a vida lhe apresenta.
“À medida que o homem – diz Leda Hume
– vai se desencantando de suas ilusões, próprias ao mundo dos sentidos, ele vai
adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas contradições. Mas
nem sempre isso significa libertação.”[5] Ao
adquirir consciência, esta lhe faz notar a sua situação no mundo e a resultante
disso será o possível aumento do desespero; assim, “a intensidade de desespero
aumenta com a consciência”[6],
ou seja, a consciência é o termômetro dessa febre mortal.
O estágio estético precede o ético,
sendo este um degrau superior em relação àquele. Para Kierkegaard, um dos
sinais do estágio ético é o matrimônio. O casamento qualifica o indivíduo como
ser responsável, aparentemente dotado de certa responsabilidade. Apesar disso,
Kierkegaard não se casou. Viveu, como dissemos antes, solitariamente. O
matrimônio é a noção do viver ético. Assim, o homem ético “tem, por exemplo,
uma profissão sólida [...] e mantém um casamento; ele se realiza, portanto, na
responsabilidade dos compromissos escolhidos [...]”[7].
Esse momento é evidenciado com mais intensidade na obra Temor e Tremor, que analisa a questão ética sob o prisma paradoxal
da obediência-morte versus desobediência-vida;
neste livro, Kierkegaard põe em apreço a fidelidade do patriarca Abraão, quando
este recebe de Deus a ordem para executar, em Morija, seu filho Isaac. Claro
que Abraão foi tomado pelo desespero, ao decidir pelo sacrifico: “quando se
voltou para puxar a faca, viu Isaac que a mão esquerda do pai se crispava de desespero [...]”[8].
No entanto, Abraão vale-se da fé para transpor as divisas da ética e galgar o
degrau do estágio religioso.
Assim, em Temor e Tremor, Kierkegaard analisa através da esfera religiosa o
problema da fé, onde o patriarca bíblico é confirmado como homem-modelo; visto
que, mesmo diante da possibilidade aparente de destruir a semente de sua prole,
prefere obedecer a Deus. Abraão a princípio não sabia o intuito de Deus: pô-lo
à prova. No entanto, preocupou-se em obedecê-Lo, pois cria que, em meio ao
paradoxo, Deus cumpriria a promessa que o faria pai de uma grande nação.
Abraão, como vimos, escolhe o
paradoxo, ou seja, supera o estágio ético da vida quando opta por obedecer a
Deus sacrificando Isaac, seu filho. Aqui o desespero serviu para fazê-lo sentir
que existia no mundo; a fé, porém, o remete para o face a face com Deus – a
existência sublime.
No plano teológico o patriarca não
pecou, pois preferiu a obediência. No ético, porém, se houvesse a consumação do
sacrifício, sobre Abraão descansaria o estigma de um criminoso. Certamente,
isso seria para os céticos, passagem predileta das Escrituras para condenar o
ato abrâmico. Todavia, a hipótese ética, nesse sentido, está fora de cogitação.
Desse modo, ao obedecer, Abraão supera o plano ético da vida para, através da
fé, “cair nos braços de Deus”.
O estágio religioso, evidenciado pela fé e o absurdo, denota o lado
autêntico da existência; e esse existir verdadeiro é acentuado intimamente pela
noção do pecado. Assim, a existência autêntica para Kierkegaard é a do cristão.
Existir é viver para Deus; por isso, quanto mais consciente da ideia de Deus,
mais o eu concretiza-se e torna-se
infinito. Nesse estágio, o que leva o indivíduo ao desespero é a sua percepção
do pecado. Esta noção de pecado é a consciência do próprio temor que este eu-teológico tem de pecar. É por isso
que Kierkegaard diz que “o desespero é o primeiro elemento da fé”[9], e
esta aponta para Deus como alívio dessa perturbação do espírito; no entanto o
homem agora desespera por estar consciente de um eu perpassado pelo pecado.
Devemos enfatizar e alertar que
Kierkegaard é um pensador religioso. Acima de tudo defensor de um cristianismo
puro e autêntico. Ele é considerado por alguns um Santo Agostinho
contemporâneo. Entretanto, esse cristianismo que nosso filósofo defende não é
aquele apresentado pela Igreja dinamarquesa de seu tempo, com quem rompeu e
polemizou. Nem tampouco, esse que é pintado hoje, na forma de exploração
mercantilista da fé. Com efeito, quantas seitas, movimentos secretos de
tendência proselitista, religiões “cristãs” ou não, ao perceberem as pessoas
sem esperanças, tomadas pelo desespero, apresentam e negociam seus “pacotes” de
salvação? O cristianismo do filósofo do desespero é outro.
Numa concepção kierkegaardiana,
“‘tornar-se cristão’ outra coisa não é senão assumir a tarefa de apropriação
existencial, vivida, daquilo que Cristo queria dizer já durante sua vida,
quando se queixava de não ser compreendido [...]”[10].
Ou como cita Hohlenberg uma passagem em
que o próprio Kierkegaard refere-se a uma entrega total a Cristo: “Está lançada
a sorte – atravessei o Rubicão. Certamente este caminho me levará à luta, mas
não renunciarei. [...] Quero correr pelo caminho que encontrei e gritar a todos
aqueles que encontrar: Não olhe para trás, como a mulher de Lot, mas lembrar-se
de que estamos subindo uma ladeira”[11].
É assim o cristianismo kierkegaardiano: um salto
de fé, uma paixão pelo paradoxo absurdo.
Assim, o cristianismo autêntico
requer um salto, como aquele que
Abraão deu e fez com que o seu eu
tornar-se “elevado a uma altitude, a uma potência superior.”[12]
Eis o irracionalismo kierkegaardiano: o
salto de fé.
Com efeito, parecer-nos-á
irracional, por exemplo, pularmos do último andar de um edifício em chamas,
quando a razão nos aponta uma possibilidade de escape por meio de uma
engenhosidade humana, mesmo que lá embaixo estejam nossos pais a clamar: “salte
meu filho!” No entanto, se é uma criança que está no andar em chamas, basta
somente que a mãe diga: “salte meu filho, nos meus braços, e estarás a salvo!”
Logo a criança salta. Viver autenticamente em Cristo, portanto, é uma entrega
total, um salto de fé para estar Nele.
Em Kierkegaard, a fé, portanto, é o
elemento que nos remete a Deus. Por meio dela a consciência do eu fervoroso eleva-se ao conhecimento de
Cristo. Desse modo, o salto de fé
transpõe o abismo da razão e do pecado, e conduz a Deus.
Deduz-se que a existência autêntica
é aquela que nos eleva a Deus pela fé em seu filho. Esta certeza não permite
ser demonstrada em uma fórmula, ou no raio de uma lente microscópica, pois a fé
prescinde toda probabilidade factual. Ela, pois, derrete o gelo da razão.
Talvez tenha sido isso que levou
Wittgenstein a dizer que “um pensador religioso honesto é como um equilibrista
em corda bamba. Quase parece que ele está andando sobre o nada, apenas ar. Seu
apoio é o mais escasso imaginável. E mesmo assim é possível andar sobre ele.”[13]
Em suma, poderíamos, para melhor
esclarecer, sistematizar da seguinte maneira: No homem de viver espontâneo,
imediatista, para quem o pecado é apenas um troféu de suas proezas, o efeito do
desespero é letal. No homem cristão, o desespero é um trampolim que o
impulsiona em seu salto de fé. Desse
modo, duas idiossincrasias, portanto, devem ser ponderadas a respeito do
desespero: fé e pecado.
Kierkegaard não fez apologia ao
desespero, mas o identificou nos indivíduos como um sinal da existência do
homem à deriva no mundo. Como possibilidade viável para cura desse mal,
apresentou como “cavaleiro da fé” a mensagem de um cristianismo autêntico, livre
das amarras mercantilistas e promessas de um falso paraíso. Por fim, registro
aqui o desfecho de sua vida, quando aos 40 anos sofreu um colapso que o deixou
com a metade inferior do corpo paralisada; pouco depois de um mês, sofreu outro
ataque que o levou à morte. Não pediu, contudo, que em sua lápide fosse gravado
o epitáfio “Aquele solitário”,
conforme havia registrado em seu diário, mas a estrofe de um hino religioso:
“Falta pouco,
para eu vencer.
Então todos os
conflitos
estarão terminados.
Poderei descansar,
então,
no vale das rosas,
entretendo-me sempre
com Jesus.”[14]
BIBLIOGRAFIA
FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Trad. Ephraim
F. Alves. Petrópolis-RJ: Vozes, 2006.
GARDINER, Patrick. Kierkegaard. Trad. Antonio Carlos
Vilela. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
HELFERICH, Christoph. História da filosofia. Trad. Luiz S.
Repa; Maria E. H. Cavalheiro; Rodnei do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
KIERKEGAARD, Sören. O Desespero humano. Trad. Alex Marins.
Porto Alegre: Marin Claret, 2002.
___________________. Temor e Tremor. Trad. Maria José
Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pensadores)
REZENDE, Antonio (org.) Curso de filosofia. 10. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
[1] Graduado em filosofia. Advogado.
Prof. de filosofia na rede pública de ensino do DF. Autor dos livros O Sofrimento dos Filósofos e Trevas Trovões Trovas: escritos de uma noite
escura (este, não publicado). Para citar o autor, use a referência: PIRES
JR. J. Fernandes.
[2] Compreender
Kierkegaard, p. 20
[3] CHAUÍ, Marilena de Souza. Kierkegaard, vida e obra, XII – (Col. Os
pensadores)
[4] KIERKEGAARD, Sören. O Desespero humano, p. 23
[5] In: REZENDE, Antonio (org.). Curso de filosofia, p. 210
[6]
KIERKGAARD, Sören. Op. cit, p. 49
[7] HELFERICH, Christoph. História da filosofia, p. 336
[8] KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. p. 115 (grifo nosso)
[9]
Idem, O Desespero humano. P. 74
[10] FARAGO, France. Op. cit, p. 185
[11]
In: Idem, Ibidem, p. 42
[12]
KIERKEGAARD, Sören. Op. cit., p. 105
[13] Apud GARDINER, Patrick. Kierkegaard,
128
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