sexta-feira, 14 de novembro de 2014

KIERKEGAARD e a pedagogia do Desespero no eu humano


por Júnior Fernandes[1]


[...] se a tua vida foi ou não de desespero e, se, desesperado, tu ignoravas sê-lo, ou soterravas em ti esse desespero, como um segredo angustioso, [...] que pode então importar o resto! Vitórias ou derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te dá como seu, ela não te conheceu ou, pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu de desespero!
Kierkegaard, O Desespero Humano



            “Algum dia, não somente os meus escritos, mas até a minha vida e todo complicado segredo do seu mecanismo serão minuciosamente estudados”. Isso foi o que Kierkegaard previu para posteridade. Em vida foi um pensador esquecido, a filosofia hegeliana ofuscava qualquer brilho que cintilasse de um filosofar existencial. Hegel era moda à época. Não havia espaço para preocupações existenciais; assim, Sören Aabye Kierkegaard foi um filósofo solitário e esquecido de todos. Para fazer valer sua previsão, financiou seu próprio pensamento com a herança que o pai lhe deixara. Sua Obra compreende uma diversidade de escritos que permeiam o labirinto da alma humana: angústia, desespero, fé, pecado, singularidade são alguns dos temas da verve kierkegaardiana. Como nos diz France Farago, “sua obra é uma obra de iniciação à vida, aos caminhos que se deve percorrer no tempo para encontrar o que ela esconde de eternidade.”[2] Dado esse multifário temático, tentaremos abordar aqui o ser no mundo, marcado pelo desespero – a doença mortal, no dizer de Kierkegaard.

            Para o filósofo dinamarquês, a existência é como que uma escada, onde no primeiro degrau temos a fase estética; no segundo, a fase ética; no último, a religiosa. São os estágios existenciais, onde o existente pode ou não galgar o degrau superior. Segundo Kierkegaard, o desespero acompanha o homem em toda sua vida, isto é, em qualquer estágio em que ele se encontre; basta-lhe ser consciente de que é um indivíduo, um ser existente no mundo. No entanto, no estágio religioso, há uma possibilidade de cura para essa doença mortal. “O homem em estado de desespero, verifica que se desespera não de fatos contingentes, mas de si mesmo. O desespero kierkegaardiano constituiria, portanto, o fato de o indivíduo ver-se confrontado com a vacuidade, o vazio, que não pode ser preenchido pelos prazeres estéticos, nem pelas obrigações éticas.”[3]

            No estágio estético, o indivíduo vive apenas o instante, ou seja, aquilo que traga prazeres imediatos. Aqui, ele busca incessantemente fugir do tédio, do nada e, consequentemente, do vazio da vida.  Entretanto, quando tais prazeres se acabam – ei-lo em desespero. Este, na verdade, já estava presente em seu ser, só aguardava o momento de ressurgir e agravar os seus sintomas. Entretanto, quando a crise passa e o desespero mitiga em estado letárgico, volta o indivíduo, noutro instante, a viver – para usar uma tipificação kierkegaardiana – como um Don Juan; mal sabe ele que “em cada instante que desesperamos apanhamos o desespero”[4]. É uma “bola de neve”.

            Naturalmente um desesperado desse naipe vive especulando as situações mais prazenteiras; seu mundo de conveniências, apenas contribui para o não conhecimento de si; assim, vive em um constante escapismo dos sofrimentos que a vida lhe apresenta.
           
            “À medida que o homem – diz Leda Hume – vai se desencantando de suas ilusões, próprias ao mundo dos sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas contradições. Mas nem sempre isso significa libertação.”[5] Ao adquirir consciência, esta lhe faz notar a sua situação no mundo e a resultante disso será o possível aumento do desespero; assim, “a intensidade de desespero aumenta com a consciência”[6], ou seja, a consciência é o termômetro dessa febre mortal.

            O estágio estético precede o ético, sendo este um degrau superior em relação àquele. Para Kierkegaard, um dos sinais do estágio ético é o matrimônio. O casamento qualifica o indivíduo como ser responsável, aparentemente dotado de certa responsabilidade. Apesar disso, Kierkegaard não se casou. Viveu, como dissemos antes, solitariamente. O matrimônio é a noção do viver ético. Assim, o homem ético “tem, por exemplo, uma profissão sólida [...] e mantém um casamento; ele se realiza, portanto, na responsabilidade dos compromissos escolhidos [...]”[7]. Esse momento é evidenciado com mais intensidade na obra Temor e Tremor, que analisa a questão ética sob o prisma paradoxal da obediência-morte versus desobediência-vida; neste livro, Kierkegaard põe em apreço a fidelidade do patriarca Abraão, quando este recebe de Deus a ordem para executar, em Morija, seu filho Isaac. Claro que Abraão foi tomado pelo desespero, ao decidir pelo sacrifico: “quando se voltou para puxar a faca, viu Isaac que a mão esquerda do pai se crispava de desespero [...]”[8]. No entanto, Abraão vale-se da fé para transpor as divisas da ética e galgar o degrau do estágio religioso.

            Assim, em Temor e Tremor, Kierkegaard analisa através da esfera religiosa o problema da fé, onde o patriarca bíblico é confirmado como homem-modelo; visto que, mesmo diante da possibilidade aparente de destruir a semente de sua prole, prefere obedecer a Deus. Abraão a princípio não sabia o intuito de Deus: pô-lo à prova. No entanto, preocupou-se em obedecê-Lo, pois cria que, em meio ao paradoxo, Deus cumpriria a promessa que o faria pai de uma grande nação.
           
            Abraão, como vimos, escolhe o paradoxo, ou seja, supera o estágio ético da vida quando opta por obedecer a Deus sacrificando Isaac, seu filho. Aqui o desespero serviu para fazê-lo sentir que existia no mundo; a fé, porém, o remete para o face a face com Deus – a existência sublime.

            No plano teológico o patriarca não pecou, pois preferiu a obediência. No ético, porém, se houvesse a consumação do sacrifício, sobre Abraão descansaria o estigma de um criminoso. Certamente, isso seria para os céticos, passagem predileta das Escrituras para condenar o ato abrâmico. Todavia, a hipótese ética, nesse sentido, está fora de cogitação. Desse modo, ao obedecer, Abraão supera o plano ético da vida para, através da fé, “cair nos braços de Deus”.
           
O estágio religioso, evidenciado pela fé e o absurdo, denota o lado autêntico da existência; e esse existir verdadeiro é acentuado intimamente pela noção do pecado. Assim, a existência autêntica para Kierkegaard é a do cristão. Existir é viver para Deus; por isso, quanto mais consciente da ideia de Deus, mais o eu concretiza-se e torna-se infinito. Nesse estágio, o que leva o indivíduo ao desespero é a sua percepção do pecado. Esta noção de pecado é a consciência do próprio temor que este eu-teológico tem de pecar. É por isso que Kierkegaard diz que “o desespero é o primeiro elemento da fé”[9], e esta aponta para Deus como alívio dessa perturbação do espírito; no entanto o homem agora desespera por estar consciente de um eu perpassado pelo pecado.

            Devemos enfatizar e alertar que Kierkegaard é um pensador religioso. Acima de tudo defensor de um cristianismo puro e autêntico. Ele é considerado por alguns um Santo Agostinho contemporâneo. Entretanto, esse cristianismo que nosso filósofo defende não é aquele apresentado pela Igreja dinamarquesa de seu tempo, com quem rompeu e polemizou. Nem tampouco, esse que é pintado hoje, na forma de exploração mercantilista da fé. Com efeito, quantas seitas, movimentos secretos de tendência proselitista, religiões “cristãs” ou não, ao perceberem as pessoas sem esperanças, tomadas pelo desespero, apresentam e negociam seus “pacotes” de salvação? O cristianismo do filósofo do desespero é outro.

            Numa concepção kierkegaardiana, “‘tornar-se cristão’ outra coisa não é senão assumir a tarefa de apropriação existencial, vivida, daquilo que Cristo queria dizer já durante sua vida, quando se queixava de não ser compreendido [...]”[10]. Ou como cita Hohlenberg  uma passagem em que o próprio Kierkegaard refere-se a uma entrega total a Cristo: “Está lançada a sorte – atravessei o Rubicão. Certamente este caminho me levará à luta, mas não renunciarei. [...] Quero correr pelo caminho que encontrei e gritar a todos aqueles que encontrar: Não olhe para trás, como a mulher de Lot, mas lembrar-se de que estamos subindo uma ladeira”[11]. É assim o cristianismo kierkegaardiano: um salto de fé, uma paixão pelo paradoxo absurdo.
           
            Assim, o cristianismo autêntico requer um salto, como aquele que Abraão deu e fez com que o seu eu tornar-se “elevado a uma altitude, a uma potência superior.”[12] Eis o irracionalismo kierkegaardiano: o salto de fé.

            Com efeito, parecer-nos-á irracional, por exemplo, pularmos do último andar de um edifício em chamas, quando a razão nos aponta uma possibilidade de escape por meio de uma engenhosidade humana, mesmo que lá embaixo estejam nossos pais a clamar: “salte meu filho!” No entanto, se é uma criança que está no andar em chamas, basta somente que a mãe diga: “salte meu filho, nos meus braços, e estarás a salvo!” Logo a criança salta. Viver autenticamente em Cristo, portanto, é uma entrega total, um salto de fé para estar Nele.
           
            Em Kierkegaard, a fé, portanto, é o elemento que nos remete a Deus. Por meio dela a consciência do eu fervoroso eleva-se ao conhecimento de Cristo. Desse modo, o salto de fé transpõe o abismo da razão e do pecado, e conduz a Deus.

            Deduz-se que a existência autêntica é aquela que nos eleva a Deus pela fé em seu filho. Esta certeza não permite ser demonstrada em uma fórmula, ou no raio de uma lente microscópica, pois a fé prescinde toda probabilidade factual. Ela, pois, derrete o gelo da razão.

            Talvez tenha sido isso que levou Wittgenstein a dizer que “um pensador religioso honesto é como um equilibrista em corda bamba. Quase parece que ele está andando sobre o nada, apenas ar. Seu apoio é o mais escasso imaginável. E mesmo assim é possível andar sobre ele.”[13]

            Em suma, poderíamos, para melhor esclarecer, sistematizar da seguinte maneira: No homem de viver espontâneo, imediatista, para quem o pecado é apenas um troféu de suas proezas, o efeito do desespero é letal. No homem cristão, o desespero é um trampolim que o impulsiona em seu salto de fé. Desse modo, duas idiossincrasias, portanto, devem ser ponderadas a respeito do desespero: fé e pecado.

            Kierkegaard não fez apologia ao desespero, mas o identificou nos indivíduos como um sinal da existência do homem à deriva no mundo. Como possibilidade viável para cura desse mal, apresentou como “cavaleiro da fé” a mensagem de um cristianismo autêntico, livre das amarras mercantilistas e promessas de um falso paraíso. Por fim, registro aqui o desfecho de sua vida, quando aos 40 anos sofreu um colapso que o deixou com a metade inferior do corpo paralisada; pouco depois de um mês, sofreu outro ataque que o levou à morte. Não pediu, contudo, que em sua lápide fosse gravado o epitáfio “Aquele solitário”, conforme havia registrado em seu diário, mas a estrofe de um hino religioso:
           
            “Falta pouco,
            para eu vencer.
            Então todos os conflitos
            estarão terminados.
            Poderei descansar, então,
            no vale das rosas,
            entretendo-me sempre
            com Jesus.”[14]


BIBLIOGRAFIA


FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Trad. Ephraim F. Alves. Petrópolis-RJ: Vozes, 2006.
GARDINER, Patrick. Kierkegaard. Trad. Antonio Carlos Vilela. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
HELFERICH, Christoph. História da filosofia. Trad. Luiz S. Repa; Maria E. H. Cavalheiro; Rodnei do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KIERKEGAARD, Sören. O Desespero humano. Trad. Alex Marins. Porto Alegre: Marin Claret, 2002.
___________________. Temor e Tremor. Trad. Maria José Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pensadores)
REZENDE, Antonio (org.) Curso de filosofia. 10. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.



[1] Graduado em filosofia. Advogado. Prof. de filosofia na rede pública de ensino do DF. Autor dos livros O Sofrimento dos Filósofos e Trevas Trovões Trovas: escritos de uma noite escura (este, não publicado). Para citar o autor, use a referência: PIRES JR. J. Fernandes. 
[2] Compreender Kierkegaard, p. 20
[3] CHAUÍ, Marilena de Souza. Kierkegaard, vida e obra, XII – (Col. Os pensadores)
[4] KIERKEGAARD, Sören. O Desespero humano, p. 23
[5] In: REZENDE, Antonio (org.). Curso de filosofia, p. 210
[6] KIERKGAARD, Sören. Op. cit, p. 49
[7] HELFERICH, Christoph. História da filosofia, p. 336
[8] KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. p. 115 (grifo nosso)
[9]   Idem, O Desespero humano. P. 74
[10]  FARAGO, France. Op. cit, p. 185
[11] In: Idem, Ibidem, p. 42
[12] KIERKEGAARD, Sören. Op. cit., p. 105
[13] Apud GARDINER, Patrick. Kierkegaard, 128
[14] HELFERICH, Christoph. História da filosofia, p. 337

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