quinta-feira, 21 de julho de 2011

As Quedas

Ensaio de João Tomaz Parreira



No Paraíso, Adão foi de Queda em Queda após a desobediência. Aplicaríamos aqui um verso clássico do poeta alemão Rainer Maria Rilke para caracterizar a espiral de solidão, de medo, de angústia, de deceção consigo próprio oriundas do interior de Adão: “ O belo apenas é o começo do terrível”.

A falha do homem (de Adão), na Aliança ou Dispensação da Inocência, lançou-o em várias Quedas. A sua experiência espiritual, existencial e moral com Deus/o Criador entrou pela porta errada da rebeldia e da desobediência e tais quedas revelaram-se na chamada Aliança Adâmica, de inocente passou a responsável e os custos dessa mudança foram tremendos para a Humanidade.

A Queda
No século XIX, o filósofo cristão Kierkegaard, pioneiro na definição da angústia do Ser humano como um efeito, apresentou a causa da mesma: a Queda no Jardim do Éden. Desde tal definição até hoje, tem-se manifestado grande dificuldade em traduzir a palavra “angst”, que serviu de base para o pensamento kierkegaardiano, no que concerne, designadamente, ao existencialismo cristão. O conceito traduzido, que tem vindo a ser usado, é “ansiedade”.

Não é novo este termo, nos seus efeitos visíveis. Adão terá sentido profunda e indefinível ansiedade no Paraíso, quando necessitou de se esconder de Deus e, nesse tempo de espera, revolver os seus arcanos angustiadamente e modificar o seu olhar sobre o próprio corpo.

O livro do Génesis narra o primeiro acontecimento físico da Queda, a expulsão do Jardim: “E, expulso o homem”(Gn 3,24)

O que tal expulsão significou, não esteve apenas no campo de uma deslocalização de um sítio para outro, de dentro para fora do lugar edénico; a expulsão do jardim foi a circunstância /o aspecto visível de um desligamento da Comunhão íntima com o Criador, operado no momento dito da Queda, quando Adão (o Homem) sucumbiu à tentação e se tornou desobediente a Deus. Antes da expulsão física, houve a espiritual e depois a existencial, se quisermos, e ainda a social, para aplicarmos termos que hoje nos são comuns.

Muito e incontável tempo depois, em pleno início da Igreja, Paulo de Tarso escreve que “todos pecaram e estavam destituídos da glória de Deus”(Rm 3,23)

Outra queda
Em vão procuramos nas Concordâncias clássicas e antigas, como a Cruden's ou a Concordances Verbales de Louis Segond, a palavra Queda para exprimir a passagem de Adão da inocência ao pecado. Não parece que disponhamos desse vocábulo para sublinhar a narrativa do Génesis.

O NT, apenas como um exemplo, quando refere “queda”, entre outras acepções usa este termo em relação a Israel (Rm 11:11). E por aí, expressões com os sentidos verbal e substantivo.

O termo “Queda” do homem é de uso da teologia e muito tardio já. Pertence, contudo, à história da salvação, não pode haver soteriologia séria que o não inclua. Pertence à pregação (ao querigma) mais do que à arqueologia dos termos bíblicos relativos ao Pecado original.

Assim surge desde as origens da linguagem grega ou hebraica como apostasia, rebeldia(rebelar-se), desviar, abandono, separação, etc. e, finalmente, perdição e ruína, no sentido moral e religioso.

Vários teólogos protestantes pós Kierkegaard usaram o termo para exprimir suas ideias, uns que se tratava de um mito narrativo para falar da condição do homem face a Deus, outros um paradigma para falar do “homem fora da vida divina”; Barth chama-lhe mesmo a “queda do homem”. A “queda” é a condição humana, numa palavra, o Pecado.

Seguindo a narrativa de Génesis 3, apercebemo-nos que da chamada queda original resultaram várias outras quedas.

A queda existencial ou psicológica.
Ao contrário do que Kierkegaard entendia, Adão (o homem) não “estava fora” da raça humana antes de desobedecer, de transgredir o limite imposto por Deus. Possuía livre arbítrio e relação espiritual com o Criador bastantes para escolher, não ainda entre o Bem e o Mal, (Gn 2, 16-17), mas entre ser ou não fiel ao Seu Amigo, com o qual se encontraria todas as tardes ( Gn 3,8), que lhe levou os animais e as aves para “ver como (Adão/o homem) lhes chamaria” (Gn 2,19).

Com efeito, Adão era -como sabemos pelas Escrituras Sagradas- o primeiro Homem da raça humana. Adão era um indivíduo concreto. A sua relação com toda a Criação era essencial, advinha da sua essência de homem criado à imagem de Deus, a sua existência não era simbólica. Essa existência de harmoniosa relação com o Criador foi destruída, Adão passou a viver entregue a si próprio, agora sabia o Bem e o Mal. A sua liberdade estruturar-se-ia a partir daí entre estas duas categorias.

Na sua busca incessante de um existencialismo cristão, Kierkegaard definiu a universalidade da Queda, agora com absoluta razão ao escrever: “a queda de Adão desenha a queda de todo o homem”

Queda social
Com a Queda, a realidade social de Adão alterou-se radicalmente. Usando linguagem contemporânea, diríamos que a função social de Adão foi guardar e cultivar o Éden. Função adequada à coroa da Criação divina, trabalho dignificador, promoção social que Deus conferiu para o homem participar na manutenção da criação. O que se poderia chamar teologia do trabalho, a partir do livro do Génesis, radica nessa acção primordial de que Adão foi incumbido.

A instituição do trabalho, não como contribuição redentora, nem como castigo, mas como facto participativo da Criação, não deixou de sofrer o estigma do Pecado, da desarmonia que este introduziu na humanidade. Uma teologia do trabalho não parte de outro ponto. Deste ponto de vista, apreciando na narrativa genesíaca a voz divina, entendemos que da alegria, do gozo do trabalho, Adão caiu para a obrigatoriedade do mesmo. Foi o que Deus lhe quis dizer, nestas palavras divinas: “ maldita é a terra por tua casa: em fadiga obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos (…) No suor do rosto comerás o tu pão” (Gn3, 17-19).

Foi uma queda social que acompanhou toda a desarmonia da própria natureza. A acompanhar esta queda, esta nova situação do primeiro homem, esteve outra que lhe marcou doravante o seu novo lugar: fora do Jardim. A expulsão do Edén foi, indubitavelmente, uma tremenda queda social; Adão do Paraíso foi relegado para o Mundo.

“E expulso o homem colocou querubins ao oriente do jardim do Éden”.(Gn. 3, 24)

Ainda assim, a misericórdia divina colocou Adão no caminho de viver, se bem com a morte dentro de si. A vida e a morte, o bem e o mal, o espírito e a carne, como estruturantes da nossa humanidade.


Análise/Perspectiva a sair na revista "Novas de Alegria", Lisboa, em Outubro.


Nenhum comentário: