terça-feira, 7 de julho de 2009

Uma antecipação da disciplina de Linguística


«Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo,
e nenhuma delas é sem significação»
Epístola de Paulo aos Coríntios, I, 14,10


O apóstolo Paulo tinha preocupações com a qualidade de toda a comunicação, mesmo que esta fizesse parte da esfera dos dons espirituais.
Estar como que falando ao ar, era algo que o apóstolo não desejava, porque invalidaria os objectivos da comunicação.
Já no seu tempo Paulo avaliava a quantidade de idiomas existentes, no plano da comunicação entre os povos e antecipava mesmo o que a semiótica e a linguística viriam a consignar acerca da significação. O que se diz e o que se compreende, aquilo que uma palavra e uma coisa querem dizer.

Paulo escreveu o mesmo ao afirmar, doutra maneira, que «toda a voz» tem significação.
No princípio do século XX, o célebre investigador linguista Ferdinand Saussure (Genebra, 1857-1913), definiu a significação como a relação de um par inseparável (chamou-lhe relação diádica), entre um significante e um significado.
Mas no século V a.C já se falava da linguística, desde Protágoras, Platão e Aristóteles. Distinguiam-se então já as quatro partes do discurso: substantivo, verbo, conjunção, artigo. Era a necessidade de se compreender o que se falava e lia já sistematizada e instituída cientificamente.

Fala e mudez
O autor da Epístola aos Coríntios, hebreu culto e conhecedor do helenismo, usou um jogo de palavras para nos dizer e recordar isso. Ao utilizar o substantivo phone e o adjectivo aphonos o apóstolo realiza no texto a ideia que já havia expressado ao perguntar «se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis como se entenderá o que se diz?» O «sentido da voz», como escreve a seguir, é o caminho da compreensão, ignorá-lo é bárbaro. Para Paulo, uma «voz», ou uma linguagem, ininteligíveis ou sem significação eram o mesmo que a mudez.

«Tanta espécie de vozes no mundo»
No texto em análise, o apóstolo doutrina sobre os dons de profecia, de línguas estranhas e de interpretação de línguas, no âmbito dos dons espirituais. Mas revela a globalidade do seu pensamento culto ao asseverar conhecer que, já no seu tempo, havia muitos idiomas. Que cada um deles tinha a sua norma própria. A sua aplicação decorria da obediência às aplicações de algo chamado gramática. Para que a fala se compreendesse era necessário seguir uma regulamentação. Etimologicamente falando, o termo gramática surge na Grécia entre os séculos V-IV a. C., para designar a técnica das letras da escrita alfabética grega. Por extensão, o vocábulo passou a arte ou ciência de ler e de escrever.

Um simples versículo, com uma frase informativa, uma advertência para o facto de que um interlocutor/falante parece «mudo», se não se fizer compreender nos sons, nas palavras, no idioma que usa, avança uma observação contextualizada com os estudos linguísticos do tempo do apóstolo.

A primeira lição a extrair é que Paulo não enjeitava a cultura do seu tempo, usava-a mesmo como ferramenta para atingir os gregos e os romanos.
Leitores do Novo Testamento já haviamos lido sobre o conhecimento paulino dos poeta gregos e da filosofia estóica e epicurista em Actos 17.
A segunda lição prende-se com a necessidade de se falar e escrever bem, para que os vários públicos a que nos dirigimos nos entendam.
Uma terceira e última lição, falar-nos-á do carácter transcultural das relações humanas.
«Tanta espécie de vozes no mundo» refere-nos já a profusão de línguas que no mundo de então havia, na chamada Antiguidade Clássica que ainda abarcava os tempos apostólicos e dos Cristãos Primitivos, a cultura greco-romana.

Paulo como missionário/viajante na Judeia, na Ásia Menor, na Grécia, na “Europa” de então, conhecia o valor de algo que muito mais tarde se chamaria transculturalidade. Sabia o que significava ser considerado bárbaro, «grego», de cultura helénica, ou judeu, no sentido do judaísmo.

Transculturalidade
É um vocábulo novo, mas a cujo conceito já o apóstolo aportava o seu modo universalista de pensar, quando asseverou que se fez judeu para ganhar os judeus, e como fraco para ganhar os fracos.
A frase que reflectia o seu único objectivo de ganhar almas para Cristo “Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns” (1Co 9:22), é, de facto, o início concludente da transculturalidade.
Como exemplo de abnegação, mas também de compreensão pelos costumes e culturas, padrões e convicções alheias, com o objectivo de ganhar todos para o Evangelho. Alguém já o afirmou, nos nossos dias, “que são decisões e atitudes que um missionário tem que tomar, pois a cultura de origem fornece valores e princípios que norteiam o missionário em sua relação com a nova cultura do país em que está a servir.”

Em tempos remotos o Talmude afirmava «A lei do país é também a minha lei». Claro que Paulo não se impregnava dos nem cedia aos costumes pagãos, mas compreendia o homem pagão perante o Evangelho que pregava; conhecemos a reacção e o discurso argumentativo do apóstolo em Atenas e a contabilidade humana diante do apóstolo diria que estava a desvantagem: falava de Um Deus perante 30.000 deuses atenienses.

O grande missionário para os Gentios partilhava da ideia de que as bênçãos que Deus deu a Abraão deviam alcançar todos os grupos de pessoas sobre a face do seu mundo contemporâneo até ao nosso. «Não me envergonho do Evangelho porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê». É o que podemos ler hoje em qualquer obra ou manual sobre missões transculturais. Séculos depois viriam as investigações de Carey para confirmar todo o trabalho desenvolvido transculturalmente por Paulo de Tarso.

William Carey, o pai das missões protestantes afirmava «esperar grandes coisas de Deus; realizar grandes coisas para Deus». O apóstolo sabia que Deus dava o crescimento, de Antioquia a Espanha (1) até às «vastas regiões rurais» do Império de que escrevia Plínio, o Jovem, ao imperador Trajano, segundo o qual o cristianismo não se havia limitado apenas às principais cidades.
Fazer discípulos em todas as nações, conforme instituira Jesus Cristo a partir dos seus discípulos, era a porta aberta para as possibilidades das missões transculturais. Da Judeia a Samaria, até aos confins da terra. Numa contextualização que poderia induzir ao fechamento do Evangelho em fronteiras, na antiguidade espácio-temporal, mas não, que não ficou retido em fronteiras, de espaço e tempo, mas veio até ao século XXI. Deixando ruinas para trás, toda a história universal que passou, mas gerando uma Humanidade Reformada, como Bernard Ramm chama à Igreja.
O mundo do apóstolo Paulo foi ficando em ruínas, de facto, meias colunas, metades de templos, esculturas decepadas e altos-relevos fechados a mármore em museus, é o que resta da esplendida arquitectura da história.
As línguas também, como o grego demótico. Hoje a globalização se é certo que mantém a linguística como norma, tem outras exigências. A tentação do historiador que é, como se sabe, mudar o passado, não pode interferir nos idiomas, mesmo os antigos que chegam até nós – o caso do grego do Novo Testamento – são imutáveis. O que tinha uma significação no passado remoto, continua a tê-la hoje, no plano dos valores, da ética, da Verdade.

João Tomaz Parreira

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