terça-feira, 28 de abril de 2009

Triste imitação de Dante

João Tomaz Parreira

Da imaginação ao papel foi uma díficil passagem para a autora de «A Divina Revelação do Inferno», Mary Baxter, porque a viagem nas asas da visão representou uma escolha. A escritora e «ministra» da Igreja Nacional de Deus, em Washington, foi incumbida de uma missão paradigmática, dir-se-ia mesmo prometeica, porquanto foi «escolhida para uma tarefa especial» entre os biliões de habitantes deste planeta.
O seu chamamento, de acordo com o que afirma terem sido palavras de Jesus Cristo para ela, «é para fazer com que o mundo saiba que há um céu, que há um inferno.» Embora o modo como vê esse inferno corra o risco de ser interpretado como uma história infantil, misto ficção científica-desenho animado pós-moderno.

«Começamos a subir cada vez mais no céu, e eu podia ver a Terra em baixo. Saindo dela, espalhados em muitos lugares, havia tubos girando ao redor de um ponto central, e depois girando de volta novamente. Eles se movimentam bem acima da terra e pareciam um tipo sujo e gigantesco de colantes (...) São os portões do inferno» - «informa» a escritora.
O modo como o mundo iria saber dessas existências, da sua geografia, dos seus conceitos na Bíblia, designadamente o lugar como destino final dos mortos que rejeitaram em vida a Salvação em Jesus Cristo, seria através de obra pseudo-literária, conforme acima ficou demonstrado, como uma espécie de fábula, que teria a última palavra sobre o assunto - o inferno.
Do livro enquanto obra de estrutura prosaica, mas sem estofo literário, pouco há para dizer, está construído num discurso que usa, embora mal, a dialogia e a narratologia mais do campo da ficção fabulosa, do que do campo da teologia bíblica, como se esperaria. Além disso, está mal escrito e, obviamente, mal traduzido num «português» de baixo nível.

Do ponto de vista da veracidade dos textos bíblicos, existe de facto exactidão na sua citação, embora os contextos sejam por norma hiperbólicos, fantasiosos, sendo a maneira de interligar tudo, no mínimo muito estranha.
Escreve a autora que as «revelações do Senhor aconteceram comigo em 1976», depois levou «oito meses a colocá-las no papel», e o «texto do manuscrito propriamente dito levou alguns anos e a colocação das referências bíblicas, uma a uma, levou mais um ano.» A obra, erigida em três patamares, revelações, redacção e referências bíblicas, iria ficar pronta em 1983, isto é, sete anos após ter recebido a incumbência - diz Mary Baxter- para que tirasse as pessoas da escuridão para a luz. Como o tempo que passou foi cruel para tantos milhares de pessoas descrentes, que sem as informações «in loco» da escritora pereceram sem saber em que lugar horrível cairiam, lugar de «ar poluído e sujo» com o «fedor de carne em decomposição».

Com uma só parábola, a do rico e de Lázaro, Jesus Cristo numa linguagem de compaixão alertou para os tormentos do inferno e de como a intercomunicação entre vivos e mortos era impossível (Lc 16, 23 ss). Com a sua infinita Graça e Amor divinos não deixou de caracterizar como e para quem é o inferno, ao afirmar que «o fogo eterno foi preparado para o diabo e seus anjos» (Mt 25,41).

A autora de «A Divina Revelação...» e de outras pretensas «Revelações», para além da forma morosa através da qual foi elaborando o texto (das revelações? dos 30 dias no inferno?), deixando o leitor com a dúvida se as revelações são uma coisa e o mês inteiro no inferno outra, primeiro foi criando os disparates e depois foi à Palavra de Deus tentar arranjar respaldo para os mesmos. Neste aspecto, nem as Testemunhas de Jeová fizeram pior. E tudo isso começa em sua casa, num clima visionário impressionante: «Luzes fluíram como ondas, que se enrolavam para dentro e para fora, dobrando-se umas nas outras também por fora e por cima», o que se constitui como uma «visão» infantilmente expressionista. Conhecerá a escritora como americana que é, a pintura abstracta do pintor Jackson Pollock, criador da action painting?

«UMA REVELAÇÃO PARA QUE OS SANTOS SE PREPAREM»
No prefácio do livro, diz-se de uma forma inconsciente que «os livros são filhos da mente», o que acaba por classificar, sem querer, o tipo de livro que vamos ler adiante.
Depois, o leitor passa das palavras de introdução à «própria» transcrição da mensagem exclusiva «Para Kathryn de Jesus», em que o destino da escritora lhe é traçado.
Até ao final do livro, o registo do mesmo não se desvia um milimetro da obsessão da escritora, que fica prisioneira da própria «revelação». Mary Baxter diz que «durante um período da sua vida, Jesus apareceu a ela durante trinta noites e lhe disse que esta mensagem é para todo o mundo». E, assim, estamos face a face com uma obra que pretende elevar-se para além das Sagradas Escrituras.

Com efeito, a realidade do Inferno não é o que a Bíblia, como Revelação divina aos homens, diz, mas, sim, o que a obreira ou pastora Srª Baxter iria «ver» e, pior do que isso, dizer que «viu», estabelecendo assim uma doutrina visual e textual sobre o inferno. E mais do que isto, o livro estabelece uma doutrina salvífica a partir da visão do inferno pela autora, ela própria narra o que alegadamente a personagem Jesus, na primeira pessoa, lhe assevera: «As coisas que você está para ver são um aviso, o livro que você vai escrever salvará muitas almas do inferno.»
Não deixa de ser verdade que os bons avisos devem produzir bons resultados, que o feed-back no destinatário é quase garantido. Mas mensagem salvífica cristã e evangélica fica assim subestimada e secundarizada, o Evangelho que é o Poder de Deus para a salvação de todo o que crê, passará a ser apresentado sob o poder da imagem do inferno, essa sim, capaz de «salvar» pelo horror.

UMA LIÇÃO FRUSTRADA DO INFERNO DE DANTE?
No mundo ocidental, o criador de uma descida aos infernos na forma de canto poético foi Dante Alihgieri. A sua terza rima e a rigorosa simetria em que o poema épico se compõe, reflecte a sua genialidade nos detalhes quase visuais. Desenvolvendo-se numa visão poética, certamente como uma obra de ficção literária, como uma odisséia e, simultaneamente, um conceito de espiritualidade e moralidade, obedeceu todavia ao rigor da honestidade. Foi honesta para com o que Dante demonstrou saber biblicamente e para com a própria humanidade a quem destinou a sua magistral «A Comédia». O seu respeito religioso foi tal, que chamou simplesmente «Comédia» à sua obra-prima. O adjectivo «Divina» foi acrescentado pela primeira vez numa edição de 1555, mais de dois séculos após a morte do poeta.

O inferno dantesco, adjectivo que se torna um substantivo dramático, não é mostrado de um modo leviano e infantil - não tem a forma absurda de um corpo como nos quer fazer crer a imaginação doentia da srª.Baxter. O inferno de Dante é como uma montanha na qual se desce em círculos, e assim para o Poeta da Renascença o inferno era composto de nove círculos, cada um representando um lugar ou uma área atribuída ao pagamento dos vários tipos de pecados.
Também não é crível que uma americana média, com um passado neurótico, tivesse lido hermeneuticamente e sob o prisma da crítica literária A Divina Comédia, mas se a leu, ultrapassou-a em imaginação e vem falar-nos da «Perna Esquerda do Inferno onde existem muitos fossos», que é «um tunel que se ramifica para outras partes do inferno» - e esta declaração narrativa não é da responsabilidade da escritora, alegadamente ela atribui a informação a Jesus, e com isso reduz o Filho de Deus ao baixo nível da sua imaginação.
A realidade do inferno, para Mary Baxter, é o que ela de uma forma blasfema coloca na boca de Jesus, sendo muito curioso e esclarecedor que a escritora não «assuma» responsabilidades. É a Perna Direita do Inferno - e o discurso é patético «Jesus volta a aparecer para mim e disse: «Minha filha, esta noite nós vamos à perna direita do inferno. Não fique assustada porque Eu a amo e Estou consigo.»»
São as Entranhas do Inferno, as Celas do Inferno, o Coração do Inferno onde parece que há mais escuridão do que nas outras partes. «A escuridão era total no coração»- escreve a Srª Baxter. Depois serão os Braço Direito e o Braço Esquerdo do Inferno. E a descrição anatómica vai por aí, paranóica e perturbadamente, até às mandíbulas e até à Boca do Inferno, onde a autora vê terminado enfim o seu sonho e nos diz «olhei para fora das portinholas do inferno». Em vão pesquisamos a Bíblia Sagrada, a fim de encontrar um apoio para isto, mas nada. Todos os escritores sagrados, de Moisés a João, estavam lúcidos, eram sérios e escreveram inspirados pelo Espírito Santo.

Assim, ficamos estupefactos ao ler que servos de Deus como David Yonggi Cho, da Coreia do Sul, se tivessem deixado enganar; e no caso de Cho tenha escrito, em abono desta infeliz obra que crê «que a Rev. Baxter teve um verdadeiro encontro com a realidade do inferno», afirmando ainda, pateticamente, «li este livro, tremendo no meu coração».
Mesmo que se trate apenas de um apoio editorial, já é muito mau, se é apoio espiritual e teológico, é muito pior, prestando um péssimo trabalho à comunidade cristã evangélica mundial.

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