segunda-feira, 30 de março de 2009

A dança das palavras

Crédito da imagem: dicionariodeetica.wordpress.com

A igreja evangélica atravessou a história resignificando as palavras. Ministério, por exemplo, originalmente uma palavra relacionada a serviço, tornou-se ao longo dos anos, símbolo de status, poder, riqueza e, em muitos casos, opressão. Humildade, aquela propriedade genuflexa de quem busca perdão, tornou-se um instrumento de manipulação. A fala mansa característica é apenas um engodo para os incautos. Com ela, as portas do interesse se abrem e o novo humilde alarga sua tenda. A palavra poder, para citar outro exemplo, ao invés de seu sentido original, dotado de prerrogativas para beneficiar a quem não o tem, tornando a justiça real, passou a ser um instrumento de privilégio para quem o possui. Inverteram-se os vetores e valores.

Oração, originalmente um diálogo prazeroso, tornou-se um monólogo, que descambou em barganha, na qual se tenta arrancar de Deus algo que não se possua. Por falar nisso, já temos a oração forte e a fraca. Não, não é semântica, nem adjetivismo. É enganação pura e simples. A forte, carregada de imperativos, faz Deus agir mais rapidamente. A fraca, o vento leva e descarrega num canto obscuro do Universo para o qual Deus não olha. Ainda não temos jejum forte, mas não custa alguém tentar. Entretanto, temos o jejum parcial. Aquele no qual se toma água. E tem o jejum light. Você só come a metade do que o faria normalmente! É o jejum mais dissimulado que eu conheço. Por falar nisso, um pastor amigo meu conjectura: Por que não jejuar do almoço ao jantar? Ficar sem comer nada á tarde?

As palavras sentem-se nocauteadas por esse movimento. Santidade, uma característica peculiar de quem deseja agradar a Deus, ficou aparentada de conveniência. Quando se pode, se é santo, quando não, se é pecador, assim, ao sabor do momento. Amor é a palavra que mais perdeu significado. Transformou-se em hipocrisia. Quem diria? Aquele sorriso plástico de um irmão é uma armadilha peçonhenta. Na verdade ele não ama o outro, deseja arrancar-lhe as vísceras.

Sermão passou de exposição ordenada de um assunto a mera demonstração de intelectualidade. Mover do Espírito a movimento carnal, quando não sensual. Aliás, estar cheio do Espírito passou a implicar colocar-se sobre os outros, contrariar princípios bíblicos e subverter a hierarquia e a doutrina. Jesus já havia dito: O vento sopra aonde quer, mas o que temos hoje é uma interpretação radical e extremista. Leitura bíblica passou de "comer o rolo todo" à seleção de passagens abonadoras. Entenderam que não é preciso ler o livro todo para compreendê-lo, um versículo ou capítulo já vale.

A cada dia o dicionário cresce. Decreto, algo que está na presciência incomensurável de Deus, passou a significar algo que alguém quer que aconteça, mesmo à revelia do Todo Poderoso. A conjugação do verbo é que dá azia. Sinceridade, perdeu totalmente o significado. Ser sincero é mentir em sua versão hard, ou se omitir na versão soft, com uma pitada de dissimulação e conivência. Prioridade transmutou-se para interesse particular.

Mas o pior são as palavras outrora banidas, aquelas que não se falava a não ser em pregações condenatórias exaltadas, aliás, em extinção. Tornaram-se familiares: corrupção, desfalque, manipulação, achaque, extorsão, mentira, gula, cobiça, adultério entre outras. Triste fim de um dicionário criado na cruz!

Precisamos de uma reforma ortográfica?!

Publicado originalmente em Reflexões Sobre Quase Tudo!

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