Por João Tomaz Parreira
Os analistas políticos no que concerne à eleição de Barack Obama não puderam sair da tautologia. Os seus textos, desde o primeiro dia (4 de Novembro), entre o The Washington Post e a Time, fizeram um arco, um segmento de círculo para depois o completar, voltando ao inevitável: «Obama Makes History».
De facto, desde a eleição de JFK, em 1960, que a narrativa das eleições presidenciais nos Estados Unidos não construia um arco do triunfo de um homem e suas ideias. Sublinhe-se, esse homem é o primeiro presidente negro dos Estados Unidos.
O paradigma mudou. O sinal transformador desta eleição, que corre o risco de ser racial, trancendeu a própria raça.
À primeira vista parece que agora a face da nova América é negra, mas teremos que aprender, de uma vez por todas, que se assim fosse, continuaríamos a laborar no racismo.
E o sinal que todos desejamos seja transformador, de facto, é que a vitória de Obama, a sua eleição e tomada de posse este mês, anuncie uma nova geração de líderes e uma América que esteja a tomar uma nova forma- segundo asseveram os analistas políticos, tendo em conta sobretudo a crise na economia mundial.
Contudo, não se pode esconder que existiu uma mudança filosófica, que foi muito conduzida também pelo coração, isto é, pelo sonho.
O sonho de Martin Luther King completou-se mais cedo que muitos imaginaram - escreveu um dos articulistas do semanário Time. Para relatar o testemunho de um cidadão-votante, de Kansas City, que relembrou a história dos negros norte-americanos, ainda da segunda metade do século XX:
-«Eu andava no autocarro quando os negros tinham que se sentar nos bancos de trás; bebi água de fontenários onde estava escrito: para gente de cor; você não podia comer em restaurantes, se fosse negro; tinha de adquirir as suas refeições num saco castanho através da porta das traseiras.»
É o caso em que o sonho contribuiu para a História, onde a poesia tem a sua quota parte. O poeta negro Langston Hughes escreveu, há alguns anos:
«Oh sim, / Eu que o diga com clareza, / a América nunca foi América para mim, / e, não obstante, prometo sob juramento- / A América vai ser!»(Trad.JTP) (1)
A magnitude da vitória do presidente Obama contribui para a história como para «um dia de transfomação», esta é a frase que o diário The Washington Post utiliza em subtítulo, para depois escrever em pequena paragona que «A História da América abre caminho para o futuro». E o passado?
Simão, de Cirene
Sem recurso a pseudo-antropologias para justificar o modo como desde os tempos da escravatura os negros foram tratados, por razões mais economicistas do que teológicas a partir de hermenêuticas enviezadas da maldição noética sobre o filho Cão, poderemos apreciar um simples acontecimento do dia da crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Relatam os Evangelhos sinópticos (2) que os soldados romanos obrigaram um certo homem de Cirene (na actual Líbia) a carregar a cruz , um peregrino-prosélito, um judeu da sinagoga de Cirene de Jerusalém ? Fosse o que fosse, era sem dúvida um homem africano.
Diante da multidão que seguia a dramática pompa do caminho dos condenados à crucificação, os responsáveis romanos do cortejo, humanitariamente foram obrigar um colored. Um homem que a sociedade judaica da altura e os conceitos sociais aferidores e dominantes daqueles dias gostariam de manter invisível. Mas os evangelistas o eternizaram, por razões que estão para lá da circunstância legal da prestação obrigatória de um serviço.
O Homem que ninguém via
A pigmentação, os traços, a discriminação racial, tornavam os negros da América invisíveis. As dificuldades sociais do negro resultavam daí e são o fundo de um célebre romance, alegadamente sociológico, da década de 50. O mesmo não quis, porém, ser mais do que uma viagem sobre a condição humana, retratada em quanto viu e sentiu, na pele, um jovem negro a viajar pelos estados sulistas nos recuados anos 20. Escrito por Ralph Ellison, conheceu a fama literária até na nossa língua sob outro título: O Homem Invisível. (3)
A personagem afirma, auto-biograficamente, a razão por que era assim: «Sou um homem verdadeiro, de carne e osso, de músculos e de sangue - Sou invisível apenas porque, compreenda-se, os outros se recusam a ver-me.»
A busca da identidade baseava-se na doutrinação do homem negro para aceitar os valores da sociedade branca. Mas afinal a cor da pele foi apenas um pretexto
para falar de algo que é sempre contemporâneo, o lugar do homem, de cada classe social e tipo racial que o incorpora na sociedade.
Milagres em negro
No romance de Ellison há uma passagem de um despejo no Harlem, um casal de velhos vê-se espoliado das suas coisas e casa por uma execução hipotecária. «Para onde vamos agora, sem um vaso»- perguntavam. Ainda quiseram estar na sala vazia, com a Bíblia na mão e, no soalho nu, «quinze minutos com Jesus». «Que nos diz a isto, senhor representante da lei? Temos ou não direito aos nossos quinze minutos com Jesus? Têm o mundo na mão, e nós? Não temos direito ao nosso Jesus?» (4)
Esta deveria ser a questão que havia de cruzar toda a sociedade. Para Deus não há homens invisíveis. A sociedade pode recusar ver-nos, por qualquer razão social ou racial, mas Jesus Cristo não se recusa a olhar para nós.
Não foi só à procura de homens e mulheres, mas também de uma identidade que missionários cristãos e evangélicos chegaram a África no fim do Século XIX e nos alvores do século passado.
Um livro precioso, editado em 1938, «Miracles in Black», de John C.Wengatz (5), trata dessa realidade, de dar visibilidade ao homem negro diante de Deus, através do Evangelho. Desde a mata tropical às ruas do Harlem.
Verificamos que o profundo significado espiritual dos contactos virgens com as tribos africanas para a proclamação do Evangelho não se fizeram em casas de desenho arquitectónico tradicional nem sequer, por vezes, nas cubatas.
No capítulo designado por «Um encontro às 5:30 da manhã», lemos esta descrição: «As pessoas acercaram-se de nós pela madrugada, tremendo de frio sob as rajadas de vento invernal, com os braços cruzados sobre o peito e as suas mãos apertando os ombros, um hábito puramente nativo para se protegerem do frio. Mas, dando as suas costas ao frio do vento uivante, tremendo e batendo os dentes olharam para nós e disseram: “Pastor, diga-nos de novo aquelas boas palavras que nos disse ontem à tarde. Conte-nos acerca do seu Amigo, o Qual nos disse que é nosso Amigo, também. Nós queremos saber acerca dele. Conte-nos mais sobre esse lugar aonde você diz que todas as pessoas boas podem ir. Nós queremos perguntar se o povo branco vai junto com o povo negro para esse lugar?”»(6)
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1-Let America Be America
2-Mat 27,32, Mc 15,21, Lc 23,26
3-Ralph Ellison, Casa das Letras,2006
4-Ibidem, Pág.223
5-Missionary Experiences in the Wilds Africa, Fleming H.Revell Company, 1938
6-Ibidem, Pág.54
in Portal Evangélico da Aliança Evangélica Portuguesa
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