sábado, 1 de novembro de 2008

Conto: Uma conversa entre ruínas

- Este lanço da escada não leva a parte alguma - Jorge Temudo, arqueólogo, lembrou-se repentinamente que já lera um poema que começava assim.

Se calhar, bem vistas as coisas, a recordação do poema não era despropositada, perante as ruínas que naquele momento visitava, como complemento dos seus afazeres, em Kefar Nahum.

Quando pisou o chão do aeroporto de Tel Aviv e olhou para o recanto mais distante da vedação, pareceu-lhe que esse espaço e as ondas do calor se configuravam com um aquário, contendo nele alguns aviões de pequena envergadura, carros de serviço à pista e pessoas apressadas. Tudo parecia dançar, serpenteando acima do solo.

Antes, quando a porta do avião se abriu e lançou os passageiros e a ele também, no ar quente que se dirigia ao Mediterrâneo, vinha a reflectir em outras coisas, a pensar no seu trabalho que o levaria a um sítio arqueológico excelente, às ruínas de uma rua que os seus colegas israelenses tinham descoberto a leste do Aeroporto de Ben Gurion, os restos de uma cidade cananeia datados de há 5 mil anos.

-É a primeira vez que venho a Israel – disse Jorge Temudo a um passageiro como ele, que viajara no mesmo voo e que ia ao seu lado no minibus da El Al.

A declaração de circunstância nada teria de anormal, se Jorge não tivesse dito a seguir, e a conversa ficara por aí, que aquela viagem não tinha sido do seu inteiro agrado. No Aeroporto Internacional havia uma vigilância que beirava a histeria e a obsessão, carros e pessoas que chegavam eram examinados por guardas armados com mini-uzis, polícias à paisana patrulhavam o edifício e as zonas limítrofes do Aeroporto. A globalização da segurança anti-terrorismo.

-Preferiria ter ido ver Persépolis ou Pasárgada a estar aqui, porque estas ruínas não levam, de facto, a parte alguma – ia dizendo depois de se ter lembrado dos versos seguintes do poema.

-« Há anos que dorme / esta pedra, nada acordará / o interior dos quartos.» – Ou então ir rever o Taj Mahal, que quase toda a gente já sabe o que é, que é completo e volumoso - e riu com a sua própria graça, motivado certamente pela companhia agradável.

Considerava-se com muito boa memória, pelo menos para decorar poesia e lembrar-se de outras viagens que fizera.

- Mas a reconstituição da vida, quero dizer do quotidiano, que aqui se passou há vinte séculos, é que dá sentido às pedras na arqueologia – respondeu-lhe a colega do Departamento de Pré-História da Universidade de Jerusalém, que fazia parte da equipe.

Sheina Stern era uma jovem mulher nascida na mistura dum colonato de Gaza, nos anos 70, os seus olhos verdes e grandes funcionavam como dois sinais de alarme para quem, de preferência do sexo masculino, se detivesse a olhar, por tempo demasiado, aquele belo rosto em que o olhar tomava lugar preponderante de mistério e beleza.

Sheina estudara também arqueologia e aplicava-a num contexto de confirmação ou de negação, conforme os casos estudados do que a história de Israel continha de bíblico, embora as suas funções destacadas para aquele sitio onde se descobriram vestígios arqueológicos de uma cidade cananéia com 5 milénios, não implicasse, de modo nenhum, a teologia.

-Confio inteiramente nas pedras, no seu silêncio, no seu discurso silencioso – precisou Sheina.

As pedras não a forçavam a posicionar-se numa religião, qualquer que fosse.

-As pedras não têm crença religiosa, tanto servem a Iavé como a Mamon, mas mostram aquilo em que os homens acreditam- costumava dizer isso e repetiu-o ali.

Quando ouviu estas palavras, Jorge sentiu-se provocado no seu cepticismo e não pode evitar um ligeiro meneio da cabeça.

Sabia que as pedras, em arqueologia, sobretudo na Palestina, têm que ser acompanhadas da palavra escrita, histórica. São quase sempre materiais de cultura pré-histórica, mas também indígena. E foi isso que lhe respondeu.

-Mas, correcto, e a oralidade histórica? Aquilo que tem passado de boca para boca? – perguntou-lhe Sheina, enquanto se preparavam para abrir a porta do «Land Cruiser» e sair.

Jorge percebeu que não seria apenas sobre pedras que iriam divergir, mas isso era bom para os consensos científicos que teriam de afirmar.

Lá fora, as pedras, como as pessoas em multidão, ainda se apertavam umas contra as outras, na solidão. O que restava da sinagoga de Kefar Nahum era, de facto, para além dos artefactos pétreos, toda a solidão de não pertencer a este tempo. Embora também não pertencesse nem aos tempos nem a sinagoga original, narrados no Evangelho de Marcos.

- Sabe, Sheina, lembro-me agora da parte final do poema, que se adequa a este caso, cujos primeiros versos já lhe disse.

- «Há anos que as ruínas / misturam os telhados / e os pátios, as colunas / que repousam do cansaço».

-O poema aqui não conta – Sheina contrapôs com uma brusquidão mal disfarçada na voz. – Não, não é que eu não goste de poesia – emendou, ao ver uma retracção no rosto de Jorge. - A verdade é que sempre podemos colocar vozes nestas salas, no que foram estas salas, quero eu dizer, murmúrios nas paredes - concluiu.

-Murmúrios nas paredes que levantarmos na memória da história… isso é também poesia – argumentou, já recomposto, Jorge, prosseguindo o que julgava ser uma inspiração – A arqueologia tem por função também tirar véus que os séculos, os preconceitos e os mitos, se encarregaram de manter.

E Sheina achou melhor concordar e perguntou, entrando no jogo:

- Já pensou em quantas conversas e orações se encostaram nestas colunas?

- Prefiro a essas análises mais do foro da espiritualidade, a história tradicional das cidades, sejam elas bíblicas ou não - respondeu Jorge. Era apenas um profissional, a sua relação com as pedras era fria, a sua emotividade reduzia-se exclusivamente à poesia. A somar a isso, descendia de uma família que tinha um passado pouco dado a amar as coisas judaicas, embora não fosse como os seus ancestrais do século XVI, um anti-semita, desses que só viam, como o outro Jorge Temudo, os judeus num sítio, na fogueira da Inquisição. Esse seu avoengo remotíssimo fora indigitado, no reinado de D. João III, para espiar e acusar os marranos.

-Há milénios que nós, os judeus, lidamos com a frieza de uma boa parte da humanidade, embora agora se justifique o anti-semitismo com preconceitos de esquerda – disse Sheina, num tom irónico, depois de ouvir aquela pequeníssima parte da autobiografia do seu colega português.

- Há anos que as ruínas / misturam os telhados / e os pátios…- Jorge já começara a repetir os versos, quando Sheina o interrompeu:

-Bem vistas as coisas, o poema até se adequa bem ao que estamos a ver. E cá temos o trabalho arqueológico que serve para destrinçar o que está misturado.

-Claro, para dar uma identidade às ruínas -afirmou Jorge com convicção.

Tinha procurado conservar uma distância razoável de fazer arqueologia fosse em solo israelita fosse no chão palestiniano, por um imperativo de consciência. Jorge Temudo parecia, agora, ter recobrado a sua identificação com aquilo que era uma parte do berço fundador da humanidade.

-Bem vê, Sheina, com um passado anti-semita na família, de expulsões e despojamento de judeus, achava que não deveria vir aproveitar-me da história, ainda que artesanal, monumental, ou o que seja, de um povo a quem se negou a existência – admitiu, com um tom de tristeza na voz, e dirigindo o seu olhar para longe.

Sheina falou por ele, num tom interrogativo, mas a revelar compreensão:

- Porque seria um acto de hipócrisia, no mínimo…

- Pior – concluiu Jorge - seria um perfeito oportunismo.

Mas o que se passara na década de Quarenta com os judeus da Europa Central e os acontecimentos recentes mudaram-lhe as ideias.

Aquele trabalho de campo arqueológico, a céu aberto, cujo sítio os seus colegas já tinham isolado e sobre o qual recaíam agora os habituais gestos de filigrana na obtenção de pequenas provas, estava porém longe de caber no pessimismo do seu poema de estimação. Por mais que continuasse a lembrar-se desses versos.

«(…)as colunas / que repousam do cansaço. / Nossos olhos / as visitam, flutuam, / e perdem-se na poeira das ruas.»

-Estafante este trabalho, mas tem um sabor de aventura - disse Sheinfeld, o outro colega contratado pelo Departamento de Arqueologia da Universidade, que tinha estado a ouvir a conversa entre os dois.

-Aventura, muita vez, connosco mesmo – contrapôs Jorge.

-Embora nós não tenhamos tempo para acompanhar a aventura da história – disse com um ar sério Sheinfeld. Para logo acrescentar, rindo: - Por manifesta limitação de idade.

Aquele trabalho iria ser de largas horas diante de qualquer coisa que no fundo tinha sido abandonada, involuntariamente, pela curta vida dos homens.

© JOÃO TOMAZ PARREIRA

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