quarta-feira, 9 de março de 2016

Espartanos - Um conto sobre missionários


Espartanos

       Foi um e-mail de sua irmã, dando conta da tragédia.
      Éramos amigos da época do Exército, servimos juntos no extinto 3˚BI, em São Gonçalo.
      Após os dez meses regulamentares, dei baixa: planejava abrir o negócio que afinal nunca abri.
      Aritana (ele era um mulato com esse estranho nome de índio tupi) continuou na farda, engajou-se e chegou a 3˚ Sargento.
      Depois de sua baixa, foi homem de realizar nosso sonho: viajou para Aubagne, na França, e alistou-se na Legião Estrangeira.
      Ainda não contei porque Aritana, bem encaminhado no Exército Brasileiro, pediu sua baixa. Ele sempre sonhara ser um soldado na acepção veraz-voraz do termo: queria porque queria entrar em combate real, dizia mesmo que nascera para combater.
      Membro dos Comandos de Selva no Amazonas, aparentemente chegara onde queria: sabia das constantes e oficialmente abafadas incursões de membros das FARC colombianas território brasileiro adentro. Inimigos reais: Aritana precisava, e iria encontrá-los. Para isso fizera os testes e os extenuantes cursos para servir no Amazonas.
      Num estranho maio, chegou pela manhã a notícia, vinda via rádio de um informante duma tribo aruaque: dois barcos dos guerrilheiros desciam pelo rio Içá. O Comandante do Destacamento de Fronteira constituiu um Comando para ir de encontro ao grupo, mas excluíra Aritana da missão. A isso se seguiu uma discussão infrutífera, um frutífero soco no queixo do Comandante, um mês de cadeia e um pedido de baixa, para evitar a expulsão com desonra.

*  *  *

      Aritana chegou à Legião sonhando em combater. Onde fosse: operações da OTAN, Senegal, Chade, em Roma, Jerusalém ou no inferno.
      No último dia 14, ainda no campo de treinamento da Legião, em Castelnaudary, meu amigo espartano foi atingido acidentalmente pelo disparo de um fuzil bullpup FAMAS, arma regulamentar do Exército Francês. Tiro disparado por um recruta argelino.
      Morreu Aritana, o melhor soldado que vi, e de toda a galera do quartel, ou melhor, de todos os homens que conheci na vida, o melhor num combate corporal, sim, o melhor na porrada. Um gladiador nato, clássico. Um pedaço de aço, ou como eu disse, um espartano. Mas seus únicos combates na vida foram as lutas ferrenhas em busca de uma Luta, de um Sonho que sempre lhe fugiu; e nossas saudosas mas geopoliticamente irrelevantes brigas de bar.
      Mas por que relato sobre Aritana, por que sua história tem tirado meu sono nesses dias?
      Desde que me dediquei à obra de Deus, isso lá pelos idos de 1999, pouco antes de minha baixa, eu nutro o sonho de tornar-me também um diferente, um precioso e especializado tipo de soldado: um missionário. Percebi em algum momento que há uma e uma única causa por que combater, e qual é a verdadeira milícia e finalmente qual é a ponta de lança desta milícia. E tenho investido em cursos e livros, na consagração de minha vida, tarefas na igreja, do microfone à vassoura, da pá ao púlpito. E serviços comunitários em meus dias de folga, na intenção de adestrar meu espírito e meu corpo na arte de servir.
      E tenho encontrado a mesma resposta, as mesmas variações floreadas em que um ‘não’ alcança metamorfosear-se: “Nossa igreja não tem condições de enviar missionários”; “Você é louco? Vai morrer lá!”; “Mas e seu emprego, vai deixar um emprego tão bom para aventurar-se? Que desperdício, menino!”; “Ainda não é o tempo de Deus”; “Você não está capacitado”; “Ano que vem vamos entrar num propósito de oração, para Deus nos dar a direção sobre isso, irmão Sammis.”
      Tenho pensado sem parar em Aritana. Como ele, tenho há anos perseguido um sonho, tenho há anos visto ele ser-me negado, postergado, indeferido. O Universo não conspira contra mim, o Universo não conspira: tudo corre pela conta de Satanás, aliado à idiotice humana, esse outro obscuro deus, que por tanto e tantos responde.
      Não, eu não vou morrer sem ver o campo que o Senhor me direcionou. Não vou morrer aqui no solo cristão de um país cristão servindo principalmente a cristãos ou a uma maioria de renitentes já enfadados de ouvir a mensagem. Ainda que ela deva continuar a ser despejada a tempo e fora de tempo, como o bombardeio da luz do sol que não se esgota e jamais murmura, prefiro e vou bombardear solo virgem, extensões de trevas que nunca viram luz ou arado. Devo e vou morrer num lugar onde precisam de quem morra, onde desesperadamente anseiam por uma migalha da mesa do que aqui sobeja.
      Vendi minha casa. Moro sozinho e ainda não falei com minha família, mas isso é o de menos. O valor levantado permitirá que eu viva no campo por quase dois anos; com essa quantia em mãos a Agência Missionária resolveu aceitar-me. É uma Agência interdenominacional, sem condições de sustentar missionários. Apenas assessora, ajuda, pastoreia os pastores que envia. A quantia é muito mais do que muitos dos que partem dispõem, muito mais do que aquilo, entre realidades e as sempre muitas promessas, com que podem contar. E para além disso, não existe a fé? É hora de dar um salto kierkegaardiano, é tempo de experimentar essa arma, para além dos pacatos ensaios no simulador que a vida cristã aqui tem sido.
      Não, eu não vou morrer boicotado pelos generais, eu não vou morrer ferido num quartel, eu não vou morrer quando prestes a lançar-me; não vou morrer sem experimentar o verdadeiro combate. Parto ainda esta semana.
      Nosso velho sonho de guerra, Aritana. De alguma maneira vou realizá-lo.

Sammis Reachers



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