quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Seguir a Cristo em auto-abnegação - Soren Kierkegaard

 


Seguir após Cristo significa negar-se a si mesmo, e significa também andar pelo mesmo caminho como Cristo o andou, na figura humilde do servo, carente, abandonado, escarnecido, não amando o mundo e não amado por este. E também significa andar por si mesmo, pois aquele que em auto-abnegação renuncia ao mundo e a tudo o que pertence ao mundo, renuncia a qualquer relação que de outro modo tenta e cativa, "de modo que ele não vai cuidar de seu campo, nem de seus negócios, nem se casa", aquele que, se se fizer necessário, não ama, decerto, o pai e a mãe, a irmã e o irmão, menos do que antes, mas ama tanto mais Cristo, que até pode dizer que odeia aqueles: ele anda, pois, por si, por si no mundo inteiro. Sim, nas correrias da vida, para lá e para cá, viver assim parece ser uma coisa difícil, impossível, impossível já de julgar se alguém vive efetivamente assim; mas não nos esqueçamos de que é a eternidade quem deve julgar de que modo a tarefa foi resolvida, e que a seriedade da eternidade deve ordenar o silêncio da vergonha em relação a tudo o que é mundano, sobre o que frequentemente se falava no mundo. Pois na eternidade não serás interrogado sobre o tamanho da fortuna que deixas -sobre isto interrogam os sobreviventes, nem sobre quantas batalhas ganhaste, quão inteligente tu foste, quão poderosa a tua influência - isto se torna tua fama na posteridade. Não, a eternidade não perguntará o que resta de mundano depois de ti no mundo. Porém ela te perguntará que riqueza acumulaste no céu; quão frequentemente venceste sobre teu gênio; que domínio exerceste sobre ti mesmo, ou se neste ponto foste um escravo; quantas vezes te dominaste a ti mesmo em auto-abnegação, ou se jamais o fizeste; quantas vezes, em auto-abnegação, estiveste disposto a fazer sacrifícios por uma boa causa, ou se jamais estiveste disposto a tal; quantas vezes, em auto-abnegação, tu perdoaste o teu inimigo, talvez sete vezes, ou setenta vezes sete vezes; ou quantas vezes tu, em auto-abnegação, suportaste injúrias pacientemente; ou sobre o que tu sofreste, não por tua própria culpa, por causa de teus propósitos egoísticos, mas o que sofreste em auto-abnegação por causa de Deus. - E Aquele que te interrogará, o Juiz, de cujo juízo não poderás recorrer a nenhum superior, não foi um Comandante que conquistou reinos e países, com quem poderias comentar sobre tuas façanhas terrenas, seu reino não era, justamente, deste mundo; ele não era um purpurado de quem poderias procurar a distinta companhia, pois ele só vestiu a púrpura para ser humilhado; ele não era poderoso em virtude de sua influência, de modo que  pudesse desejar ser iniciado em teus segredos mundanos, pois ele era tão desprezado, que o homem distinto só ousou procurá-lo protegido pela noite. Oh, já é sempre um consolo reunir-se com seus iguais; quando se é covarde, não precisar então apresentar-se ante um tribunal de guerreiros, quando só se ama a si mesmo e só se pensa no mundo, não precisar então ser julgado por pessoas abnegadas. E este Juiz não apenas sabe o que é auto-abnegação, ele não apenas sabe julgar de tal modo que nenhum equívoco possa ocultar-se, não, sua presença é aquilo que julga, que faz tudo calar ou empalidecer, daquilo que mundanamente se apresentava tão bem no mundo, era ouvido e visto com admiração; sua presença é aquilo julga, pois Ele era a auto-abnegação. Ele, que era igual a Deus, assumiu a figura de um humilde servo; Ele, que podia ordenar legiões de anjos, sim, sobre a criação e a ruína do mundo, Ele andou indefeso por aí; Ele, que tinha tudo em seu poder, renunciou a todo o poder, não conseguia nada fazer por seus caros discípulos, mas apenas oferecer-lhes a mesma condição da humildade e do ultraje; Ele, que era o senhor da criação, forçou a própria natureza a comportar-se tranquilamente, pois foi somente depois de Ele ter entregado o espírito que a cortina se rasgou e os túmulos se abriram, e as forças da natureza traíram quem era Ele; acaso isto não é auto-abnegação, então o que é auto-abnegação?

in O Evangelho dos Sofrimentos (Discursos Edificantes em Diversos Espíritos, LiberArts, 2018).


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