sábado, 17 de dezembro de 2011

O “NÃO” PRIMORDIAL

Artigo de João Tomaz Parreira

(a sair na revista Novas de Alegria, Janeiro 2012)


Não foi um salmista que inscreveu nas Escrituras Sagradas vários primeiros “nãos”, quando compôs o Salmo 1 como “porteiro” para confrontar aqueles que querem estar na Congregação dos Justos.

Muitíssimo antes foi o próprio Deus que ao promulgar um vastíssimo conjunto de “sins”, determinou apenas um “não”. O Não primordial. “Mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás” (Gn 2,17)

Até este momento, a relação de Deus com a Sua Criatura, o Homem-Adão, estruturava-se, digamos assim, numa palavra: o Belo ou Bom (“E viu Deus que era bom”). Expandia-se esse relacionamento primevo apenas em Direitos, não chegara o momento do Dever arquetípico e explicíto.

Alguém escreveu, para o contexto do Éden, que “a provisão feita por Deus é modelo do cuidado paternal” (1)

Adão teve um abrigo, não uma prisão sufocante. Adão não era ainda mortal, embora feito de matéria precária (o pó, o barro, a terra ), mas o sopro divino, vivificante, o distinguiria das outras criaturas.

O Criador não era um deus determinista, que lançava o homem na fatalidade. A primeira residência do homem na Terra não foi um deserto, havia Beleza inocente mas também havia sedução, e o mais importante do relacionamento Criador-Criatura era o livre-arbítrio, a liberdade no Jardim.

O Éden, pela localização que posteriormente se passou a conhecer na Geografia, não era um símbolo, nem tão-pouco um mito ou um ícone ideológico para falar do verde, do belo, era um lugar (“plantou o Senhor Deus um jardim no Éden”, 2, 8). A forma hebraica para dizer “deleite” acabou no grego da Septuaginta a dizer “paradeisos”, (“parque, paraíso”).

Esse Paraíso promovia direitos, antes de qualquer constituição política, o usufruto universal dos bens divinos, os consequentes “sins” da liberdade de Deus para o ser humano, personificado no primeiro homem. E a liberdade de Deus é como Deus, ilimitada, irrestricta, porque – como escreve o teólogo Bernard Ramm (2) - “Ele é o Criador livre, o Reconciliador livre, o Redentor livre”. E a liberdade que concede ao homem é para que seja criatura diante d'Ele, em primeiro lugar, depois, criatura perante o mundo, que Ele criou também.

Foi nesta liberdade que Adão ficou diante de toda a criação, no Paraíso. Não podemos identificar as árvores, todas as árvores do Jardim do Éden, todas pertenciam ao homem no seu gozo pleno dos frutos das mesmas. A misericórdia divina, via-se e vê-se na multiplicidade, na multiplicação. O único desejo e escopo divinos de extinção de alguma categoria, é, sem dúvida, do Pecado.

Mas a liberdade inefável de Deus queria reter para si uma árvore, não por Sua causa, mas por causa dos “danos” que faria ao homem; e o Senhor, sendo cioso do seu “não”, ainda assim libertou o ser humano para a possibilidade de Escolher. E escolher implica Crise, isto é, tem todos os riscos da mudança.

Contudo, o Senhor no Jardim do Éden não confrontou o homem com uma escolha obrigatória, segundo o pensamento de Kierkegaard, nem com alternativas previamente
determinadas, na existência de Adão abriu-se a possibilidade existencial da opção.

O possível acto opcional de Adão, sabia-o omniscientemente Deus, iria cortar a relação, a liberdade iria estar acima da comunhão porque a liberdade é uma parte essencial da natureza do homem, o espírito é a fonte dessa liberdade. Adão ouviu o “não”, como não deixou de ouvir os “sins”.

Não havia, perante Deus, no Jardim do Éden, condições prévias para desobedecer – porque isso equivaleria ao controle do determinismo.

Mas no exacto momento da sedução, a quantidade desses “sins” disponíveis pelos cuidados divinos sucumbiu à qualidade do “não” primordial, a proibição, qualquer proibição depois disso, carrega em si o mistério. E tragédia.

Se se obedece, fica-se sem desvendar esse mistério; se não se obedece, fica-se a conhecê-lo e à tragédia. Mas valeu a pena? No caso edénico? Foi o que Adão e Eva escolheram. Desvendar o mistério do fruto e a tragédia. Diria que os chamados “nossos primeiros pais” sucubiram à paixão do “Não”.

Porque esta paixão é difícil de explicar, na sua interioridade, salvo melhor opinião, por isso é que a desobediência ao “não” divino é mais vezes usada em hermenêutica do que em homilética.

Raramente se ouve uma pregação centrada na preferência do “não” contra os “sins”. Às vezes até parece que se prima por proferir uma pregação determinista, da fatalidade, porque estava no Éden Satanaz a determinar tudo, o que não é verdade.

UM NÃO DIVINO E UMA ATITUDE DO HOMEM

Ao lermos atentamente a narrativa do Génesis (2, 16-17), não podemos, contudo, ignorar o termo “ordenou”, na oração gramatical “E ordenou o Senhor Deus ao homem”. O vocábulo oriundo de “ordem” ( há versões/traduções da Bíblia que usam a palavra “ordem”), deve ser pensada não em termos legalistas ou policiais, mas de uma Aliança tendente à responsabilização de Adão ( do ser humano) diante do Criador.

Tal Aliança não colocou em causa a soberania divina nem a liberdade de escolha humana. Assim, isso leva-nos, finalmente, à proposta de outro pensamento sobre a atitude de Adão: numa Aliança não pode haver desobediência, pode existir traição, e Adão e Eva trairam. “Nunca se é traído, senão pelos seus” - é um aforismo clássico, suponho que da psicologia. Apesar de traído (no Amor sublime que dedicava à Sua Criatura), mais do que desobedecido ( na sua soberania divina), Deus continuou a Amar Adão e Eva.

O Deus do Éden é o mesmo, não houve um Senhor para o Jardim e Outro fora do Jardim.

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(1)Génesis, Introdução e Comentário, Derek Kidner, pág. 57, Mundo Cristão, São Paulo

(2) Diccionario de Teologia Contemporanea, pág 24 e ss, Casa Bautista de Publicaciones,1975

João Tomaz Parreira

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