Quem tem olhos para ler, leia. O vento forte bateu no guarda-chuva do nosso herói Patranha, e ele foi parar ali, naquela cidade tão no interior do país que não se sabe sua história. Enquanto caminhava pela cidade, alisando o lóbulo da orelha, como sempre fazia, deparou-se com uma cena que lhe roubou a atenção: eram duas fileiras de negros, seminus, com coleiras presas entre si, cuja guia estava nas mãos de dois brancos bigodudos.
- O que é isso? – perguntou o herói?
- São os escravos e os capangas do coronel Gusmão, da fazenda do Boi Bravo. Ele mantém escravos em sua fazenda desde o tempo em que havia escravidão no Brasil, mas os escravos não sabem que a lei da escravidão foi abolida e ninguém tem coragem de avisá-los, pois o coronel Gusmão é boi e dos bravos!
O lóbulo da orelha do Patranha ficou vermelho. Seguiu-se que ele foi até a tal fazenda, bateu palmas chamando um dos capangas e disse, com aquela docilidade infantil:
- Oi, vim avisar os escravos que já não há lei que os escravize, a lei da escravidão foi abolida, eles são livres agora!
Quem tem ouvidos para ler, leia.
- Ah! Claro, como não pensamos antes em avisá-los? Respondeu ironicamente o capanga. Venha, entre, eles irão adorar saber disso!
Colocou o Patranha sobre uma demarcação de um X e o capanga, com aquele riso de hiena, apertou o botão vermelho e catapultou nosso herói a quilômetros dali. É que sempre tem alguém que paga o pato quando a lei é abolida.
- Preciso arrumar um jeito de entrar na fazenda, pensava a obstinação de Patranha.
Nesse vai nesse vem, ele encontrou-se com o aviador.
- Olha só, eu sobrevoo a fazenda indo pela manhã e voltando pela tarde todos os dias. Se você arrumar um pára-quedas, pode entrar pelo céu. Mas eu não pouso lá de jeito nenhum!
Sem tempo pra arrumar um pára-quedas, Patranha fechou contrato:
- Então tá, você me leva pela manhã, e no outro dia, pela tarde, eu pego você no céu e volto.
Assim fizeram. Pela manhã, o avião estava a pino da fazenda e o Patranha arrumando um jeito de aterrissar. Até que apontou...
Dentro da fazenda.
Até que apontou a pedra de um estiligue numa árvore muito alta e atirou. Nisso, explodiu a passarada da árvore e, da primeira ave a voar até a última a sair do galho, formou um grande tapete entre o avião e a árvore, e Patranha desceu por ele, na pressa daquele que sobe a escada rolante pelo lado contrário. Deste modo, desceu a árvore e estava dentro da fazenda.
Aproximou-se de onde trabalhavam os escravos e ficou escondido entre os arbustos. Observou horrorizado os maus tratos, os sofrimentos e a carga pesada que carregavam os escravos. Patranha então se lembrou quando ele mesmo tinha sido um escravo, há muito muito tempo atrás, na época em que o Egito ainda fazia suas pirâmides. Chorou como uma criança, mas aquele que o enviou soprava uma brisa que ventilava seu coração. Quem tem olhos para ler, leia.
Quando anoiteceu....
No galpão.
Quando anoiteceu, e os escravos foram todos colocados em um grande galpão, Patranha foi até lá, e viu as péssimas condições em que estavam, mas tão acostumados que estavam, não percebiam suas condições, pelo contrário: eram tratados como animais, mas achavam que estavam seguros e que eram privilegiados. Quando nosso herói levantou-se diante de todos, os escravos todos se olharam espantados:
- O que esse estrangeiro veio fazer entre nós?
- Saudações homens – discursou Patranha. – Vim dizer-lhes que devem deixar de servir o Coronel Gusmão como escravos, devem deixar este galpão imundo, pois alguém já pagou o preço e a escravidão foi abolida e vocês são homens livres!
Um profundo silêncio antecedeu a mais absurda das risadas coletivas e, junto dos porcos, os negros gargalhavam e zoavam Patranha. Ele sabia que nem todos estão preparados para sair da escravidão, mas tinha convicção de que se ao menos um saísse livre dali, todo o trabalho já teria valido a pena, e esse um era o José Bento, que chamou o Patranha à parte e, entre lágrimas, pediu-lhe que lhe mostrasse a saída daquele lugar que agora via, era uma vida miserável.
Os dois saíram rapidamente...
A fuga.
Os dois saíram rapidamente daquele lugar e o Patranha passou a noite explicando os novos direitos humanos a José Bento. Ele ficava atordoado de raiva pelo que passara junto com extrema alegria pelo que descobria agora.
À tarde do outro dia, Patranha levou-o à árvore mais alta, e quando avistou o avião do aviador, lá perto, deu um assobio ensurdecedor que foi como um grande vento espalhando aquele cortinado de pássaros que voavam da árvore e, tal qual alguém que está numa escada rolante, assim os dois pegaram carona no cortinado das aves até o avião. Quando o aviador viu os dois em seu avião, alegrou-se, mas disse: doidos!
José Bento, assim, foi deixado na cidade e Patranha foi levado pelo vento.
Anos mais tarde, quando Patranha retornou àquele lugar, encontrou-se com José Bento, que agora era um riquíssimo advogado, destacado naquela cidade, e através de sua lei, trabalhava pela libertação dos escravos do Coronel Gusmão.
- Já libertamos mais da metade dos escravos! – disse ele, orgulhoso.
Até que Patranha lhe perguntou:
- Dr. José Bento, você sabe explicar como ficou tão rico, e pessoas que são livres desde quando eram crianças não conseguiram tanto sucesso?
O advogado explicou:
- Sabe, Patranha, quando cheguei aqui, eu vivia e respirava a liberdade, mas aqueles que nasceram livres, na verdade, são livres mas vivem como escravos, se acostumaram com a vida que levam e por isso, também, não valorizam nada a liberdade e para elas pouco importa que ainda haja escravos na fazenda do Boi Bravo.
Quem tem olhos para ler, leia, pois tem mentirinhas que revelam a verdade que é inacreditável!
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