Por João Tomaz Parreira
Nem memória, nem história exaustiva, o que será que caracteriza o pensamento de um dos povos da Bíblia, os judeus, quanto à narrativa do livro de Génesis, no que concerne à Queda de Adão e de Eva? A teologia seguramente, dir-se-á.
Apesar do que afirmou certo historiador judeu, que Israel «é um povo de muita memória e pouca história», querendo referir-se com certeza aos judeus do século XX, ao analisarmos o Velho Testamento vemos que não é assim.
Muito antes do agora tão falado Islão, não há religiões mais históricas e mais contextualizadas que o Judaísmo e o Cristianismo.
Contudo, em relação a si próprio, o povo judeu habituou-se a extrair ensinos da história sagrada e a estruturar uma consciência fortemente marcada pela sua relação com o Divino.
Por isso nunca foi muito dado à prática do relativismo, porquanto este não é compatível com o profético, com a profecia bíblica.
O relativismo, sobretudo o moderno, ensina que tudo o que acontece é aceitável, basta relativizar as coisas. Em linguagem do âmbito da filosofia, o termo induz a crença de que não existem absolutos.
Mas a história bíblica do povo israelita ensina que existem o Não e o Sim, o Bem e o Mal, a Verdade e o Erro. Sem cair no maniqueísmo, há fronteiras vitais, mas os relativismos abolem-nas. Onde Deus coloca desde o princípio o Não ou o Sim, o relativismo humano não pode colocar o contrário de cada um. Tal atitude de desobediência caracteriza-se por uma só palavra: Pecado. E o relativismo é a aceitação dessa desobediência como prática corrente e inevitável.
Não é por acaso que entre os antropólogos se defenda o relativismo cultural e os relativismos derivados, uma vez que o ser humano pretende colocar tudo ao mesmo nível, Deus, o homem, as culturas, a moral, a ética, tudo é igual, tudo se relaciona sem absolutos. Também que toda a conduta do Homem é boa em si mesma, natural e importante, em todos os contextos é o ser humano que impera. O relativismo é mesmo característico do agnosticismo no seu conjunto. A obediência a Deus não é uma pura convenção ética que pode mudar e adapatar-se às circunstâncias e normas vigentes na sociedade.
O RELATIVISMO NO JARDIM DO ÉDEN
O relativismo principiou no Éden com uma sucessão de atitudes de claudicação, de falta de firmeza perante uma excepção divina, que longe de introduzir mal-estar no seio da humanidade, pelo contrário a beneficiava para a Vida. A ordem de Deus foi clara: «De toda as árvores do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás».(1) O efeito da desobediência foi revestido também de clareza: -«porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás ».
A relativização iniciou-se na argumentação do Diabo, que julgou dessacralizar, ou «des-absolutizar» as palavas de Deus. Todas as formas de ordem poderiam ser ultrapassadas, desde que se pudesse condicionar tais ordens a uma contextualização. Assim, esse primeiro relativismo influenciou o comportamento da mulher e do homem, levando ambos a transgredir.
Os argumentos de Satanás, que vamos procurar ver em linguagem actual (2), são extremamente sedutores. - «É verdade que Deus disse », e a relativização da verdade divina em relação a um simples gesto quotidiano - comer ou não comer, usar ou não usar - começou aqui. O aceitar essa verdade e contextualizá-la de acordo com nosso pensamento e conveniência. Também o colocar na boca de Deus palavras que Ele não disse. Esta é uma atitude moderna. - «... Que não deviam comer de nenhuma das árvores do jardim? » O chamado diálogo dos diferentes quando não se possui convicções enraízadas ou se conhece mal os conteúdos pode ser (é) prejudicial.
Os relativismos de hoje e o pós-moderno propõem muito este tipo de diálogo. -«Não. Nós podemos comer a fruta de todas as árvores do jardim », disse Eva. -«Só da árvore que está no meio é que não devemos comer. Dessa é que Deus disse que não devíamos comer e nem sequer tocar-lhe, senão morreríamos.»
A verdade revelada serviu ao Diabo para rebaixar uma afirmação de fé ao nível da mera metáfora e da história, construindo uma falsa ponte entre estas e a afirmação de fé através da dúvida.
-« Isso não é verdade. Não morrem nada ! »
Estabeleceu-se deste modo o primeiro relativismo, permitindo pensar que nada é certo, nem fixo, que as palavras divinas não eram um absoluto, mas qualquer coisa que poderia ser alterada de acordo com os desejos do próprio ego humano.
Não satisfeito com o lançar a semente da dúvida, dir-se-ia que pretendeu criar um sistema filosófico em que o reducionismo da divindade aos meros sentimentos humanos era já uma pedra basilar do agnosticismo e do ateísmo. - «Deus sabe muito bem que no mesmo instante em que comerem esse fruto os vossos olhos se hão-de abrir, e serão capazes de distinguir o bem do mal.» Versões tradicionais e mais antigas da Bíblia de Almeida dizem: «Sereis como Deus », algo que o Diabo sabia ser impossível por experiência, quando o orgulho o cegou, e que veio lançá-lo no abismo.
UM EXEMPLO DE RELATIVISMO
No final dos anos 90, um pensamento teológico, oriundo da Grã-Bretanha, espalhou-se provocativamente.
Assentes na então exígua obra de uma professora argentina de ética cristã, Marcella Althaus-Reid, as suas lições na Universidade de Edimburgo reclamavam por uma «teologia sem roupas íntimas». O que a autora queria dizer com isto, é que se deve contestar por exemplo o que chama «a ideologia heterossexual» da Bíblia, procurando lançar na opinião pública um «Deus de muitas faces», para todos e todas as orientações, sejam elas quais forem, o que se nos afigura um novo panteísmo, neste caso ético-moral. É o pós-modernismo, são as interpretações modernas sobre Deus e a Sua Palavra, e de preferência tudo quanto O provoque.
OS RELATIVISMOS HOJE
O papa Bento XVI, com o mesmo estilo indefectível do ex- cardeal Joseph Ratzinger, tem vindo a alertar para os relativismos, chamando-lhe no contexto actual «a ditadura do relativismo» que está a dominar nas categorias do filosófico e da moralidade. Ser levado por qualquer vento de doutrina, parece ser a atitude dos tempos modernos.
Poucas horas antes de ser eleito, o cardeal Ratzinger afirmou o que nós, evangélicos, também subscrevemos, que «é necessário defender uma fé clara», o que definitivamente é o oposto do relativismo religioso.
Tais relativismos, contra os quais também os evangélicos se batem, vêm introduzindo no mercado das ideias e das atitudes éticas, que tudo pode ser alterado por circunstâncias mais favoráveis, que a moral é transitória, do aborto às díspares orientações sexuais, que tudo possui igual valor, que tudo é aceitável. Mas não é. -
(1) -Gén.2,17)
(2)- O Livro, a Bíblia para Hoje, da SPB)
Nenhum comentário:
Postar um comentário