domingo, 28 de agosto de 2016

ONDE DAVID PÕE OS OLHOS

Micro conto 

                  

Do alto do terraço, que recebe toda a luminosidade com que a tarde se espraia e demora nas varandas, David perguntava com o olhar quem era aquela mulher.
Formosa, num despudor que talvez não fosse inocente mas sem exibicionismos, apesar da sua beleza jovial.  Deixava passar sobre o corpo, na sua leviandade,  o frescor da água do  banho.
David, pastor de povos, tinha um enormíssimo rebanho, mas foi logo apaixonar-se por essa pequena cordeira, e roubá-la ao marido.
A jovem mulher também passava os olhos, despreocupadamente,  pelo próprio corpo, as suas mãos tocavam-no inocentes,  sem ter um rasgo de lucidez  que a levasse a pensar que poderia estar a ser observada. Mas os olhares reais estão acima de qualquer leve suspeita. Um olhar de soberano pode ser uma ordem, como foi o caso.
O vento não soprava com força, era um leve ventar, mas os cabelos compridos de Bate-Seba, molhados, não acompanhavam as voltas e revoltas do vento, eram ornatos negros que se moviam apenas aos movimentos do corpo.
Fazia-se sentir, no entanto, nos ramos das plantas ornamentais,  nas talhas douradas que adornavam o terraço.  E foi esse vento que agitou os véus e fez descobrir como, quase nua, se lavava Bate-Seba.
Ela lavava-se não tão inocentemente quanto possa parecer, como muitos séculos depois Pilatos, pegando numa bacia, lavou as suas mãos diante da multidão.

28-08-2016

© João Tomaz Parreira  

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