sábado, 15 de junho de 2013

A CORDA ( Conto de João Tomaz Parreira)

                               


Ainda tentou erguer os olhos acima da sua cabeça, mas a luz apagou-se. 
Debaixo do céu onde principiavam a pairar os corvos, que o homem já não poderia ver, porque cortara todos os laços com esse céu, o corpo não passava agora de um peso no laço da corda.
Um outro tipo de peso, denso como uma nuvem negra, tinha-se formado antes na sua consciência.
-Traí o sangue inocente - dissera ele. Ainda não pesava o ter cometido suicídio, uma proibição entre as 613 leis da Torah. Por isso, aquele suicídio seria embaraçoso, não deixava de ter uma ligação com os sacerdotes principais de Jerusalém, mais tarde até um evangelista iria levar o caso para o cristianismo.
O homem, mesmo antes do resultado final, ao saber que Jesus tinha sido condenado a morrer, resolveu o assunto.
-É verdade, é verdade, não posso alterar a história – disse com voz trémula, mas cava. E acrescentou - Se pudesse ia falar com Pilatos, dizer-lhe que o dinheiro não é tudo agora.
E foi ao fundo da memória lembrar-se da viúva que lançou a sua última moeda na caixa das esmolas do templo.
-Isso é contigo – tornaram os chefes judaicos.
-Digo-o, porque é verdade, era isso que gostaria de fazer. E atirou aos pés dos religiosos as moedas de prata.
-Ele, apesar do que lhe fiz, falou-me – ainda disse o homem, mais para si próprio do que para os dirigentes do tribunal.
-O que Ele te disse, não nos interessa agora- e fecharam-lhe a porta à conversa.
Nos seus ouvidos ressoavam como pedradas as palavras que ouvira, embora tivessem o peso do algodão que se aplica numa ferida: - Amigo, faz o que tens a fazer – dissera-lhe Ele após o beijo.
Depois desse momento, há quem garanta que o viu a chorar, mas não se pode confirmar esse acontecimento. As lágrimas são, por natureza, gotas de água suave que saem duma fonte trágica que se acorda e que ninguém sabe onde fica. As suas seriam no entanto chicotadas nas faces . O homem não podia parar de pensar nisso.
Nos últimos três anos de vida, enquanto acompanhara aquele a quem um dia chamou Mestre, o seu trabalho tinha sido tesoureiro e acumulador de decepções acerca da missão desse Mestre. Agora não seria nem tinha mais nada.
- O corpo, é a única coisa que tenho – disse para si, enquanto escolhia uma árvore adequada.
Tinha cerca de quarenta anos, evidenciava amargura, a barba crescida tornava-o escuro,
 tinha um olhar aguçado nuns olhos que pareciam sempre escondidos entre duas fendas, as suas mãos eram belas, dedos compridos, quem procurasse o seu trabalho anterior não era pelas mãos que o descobriria. Era de Queriote e não havia lá a tradição da pesca, o mar estava morto.
Enforcou-se, a seguir. Teve medo de viver com a sua traição. O ter devolvido as trinta moedas não foi suficiente para tirar o vil metal da sua alma, nem os ruídos das moedas lançadas à lage de mármore se sobrepuseram aos remorsos. O coração parou, enfim, a excitação.
O local, com as suas figueiras, e o vento a espreitar por entre as folhas, era sossegado.
Pendurado debaixo da figueira cuja copa e as folhas impediam que a luz solar lhe deramasse pelo chão o desenho do seu corpo, o homem era uma sombra dentro da sombra.
O corpo já não lhe importava, seriam agora livres de se servirem dele, o que Judas I estava a enforcar era a sua alma. A pequena morte nas carótidas a apertar a maçã de Adão era o menos.

2013
©

Um comentário:

Sammis Reachers disse...

Excelente conto, meu amigo!