quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
De uma Cruz a outra cruz: a palavra do Perdão
João Tomaz Parreira
A crucificação de Cristo apresenta-se aos olhos da história como um crime da religião, por isso pode ser integrada numa história universal da infâmia.
A infâmia é, para a cultura filosófica e literária, uma relação entre o mal e os homens, desde o filósofo Michel Foucault ao poeta Jorge Luis Borges, que assim o asseveraram e escreveram sobre ela.
Nesta perspectiva , podemos afirmar sob dado ponto de vista, que certos sectores religiosos judeus foram infames, mais do que os romanos, ao levarem Cristo a julgamento irregular, à condenação e à execução na Cruz, no Monte do Golgota.
Contudo, a frase de Jesus Cristo crucificado, uma das chamadas 7 palavras da cruz, “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem”, parece redimir os judeus e os romanos da infâmia (a menos que o Senhor a estivesse a usar apenas para os romanos, que parece ser o caso histórica e hermeneuticamente), é que a inocência não pressupõe infâmia.
O referido poeta JLB, numa entrevista sobre a sua História Universal da Infâmia, disse, citando a frase de Jesus: «Eu julgo que Jesus sentiu isso. Sentiu que os seus carrascos, aqueles que o pregavam na cruz, não eram forçosamente uns canalhas. Eram soldados que deviam obedecer às ordens que recebiam.»
A circunstância da frase de Jesus
O quadro diegético (a narrativa) em que esta petição de Jesus se exerce, está registado apenas no Evangelho de Lucas e parece não oferecer discussão aos chamados Pais da Igreja( de Irineu, Clemente a Eusébio) ainda que não se encontre em todos os manuscritos gregos antigos.
As razões, do ponto de vista da elaboração do texto lucano canónico, estarão no próprio objectivo do Evangelho de Lucas e no mundo civilizacional que pretendeu atingir: os gregos, a cultura grega, numa palavra, os gentios, no sentido paulino. Também porque Lucas é a narrativa mais completa da vida de Jesus Cristo.
Assim, a inclusão daquele pronunciamento do Senhor reveste-se de um sentido teológico e da atitude divina e humana de Cristo para com os homens. O relacionamento sempre com base no Amor divino e no Perdão. “Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem”(Mat.5,44). E, em contexto de sofrimento e morte próxima, “Pai, perdoa-lhes...”.
Lendo a composição dos factos do Evangelista, médico e escritor, vemos que o tempo cronológico e o psicológico, o espaço ( o local) e as personagens, elementos da narrativa, reportam o início da crucificação e os autores materiais da mesma. Admite-se como certo nos meios da hermenêutica fundamentalista e da história da crucificação que a frase de Cristo possa ter sido dita aquando os soldados O cravavam na cruz.
Quem rodeava o Filho de Deus e agia sobre Ele, de forma violenta pelo acto próprio de uma crucificação, foram os soldados romanos; os judeus entregaram-No e, tal como Pilatos, lavaram também desse facto as suas mãos. A narração de Lucas situa-nos nesses momentos precedentes e posteriores à crucificação.
É factual que a proximidade dos romanos e a sua acção “legal” e administrativa efectuada, tenha levado Jesus Cristo a interceder misericordiosa e amavelmente, com Amor que só é divino, rogando para eles e seu acto, Perdão.
A dificuldade poderia estar na causa do pedido desse perdão: que não sabiam o que estavam a fazer. Os romanos não sabiam, cumpriam a execução de uma pena de morte; os judeus, à distância do Monte do Calvário, mas mais perto psicologicamente, religiosamente, familiarmente (conterrâneos) de Jesus, esses sabiam em consciência o peso da sua conta naquela crucificação. Não foram as suas vozes reunidas perante Pilatos, que gritaram bem alto “ O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.”?
Sobrepondo-se a quaisquer análises, quer ao que decorre da diegese usada por Lucas, quer à contextualização dos eventos na história da Paixão e Morte do Salvador, há o aspecto profético, do cumprimento profético das palavras de Jesus, palavras tolerantes, compreensivas da natureza humana e repletas de Amor divino.
Com efeito, o proto-Evangelho em Isaías e a narração profética antecipando a história do dia da crucificação, apresentavam esse quadro na parte final do cap. 53, assim: «...foi contado com os transgressores (os dois malfeitores que O ladeavam); mas ele levou sobre si o pecado de muitos ( a função substitutiva do Redentor), e pelos transgressores intercede (aqueles que o estavam a crucificar, naquela circunstância temporal e, soteriologicamente, em sentido mais profundo universal).
De uma Cruz a outra cruz
As três cruzes erguidas no alto do Golgota têm cada uma um lugar na narração de Lucas, sendo a do meio protagonista material de relevo. Nela estava cravado o Filho de Deus. O próprio Jesus Cristo referiu-se, por duas vezes, a esse acontecimento, usando em ambas o verbo ser “levantado”, donde se infere a morte de cruz, da qual havia de morrer (Jo 3,14 ; 12,32), do mesmo modo que o termo induz também exaltação.
A cruz é um símbolo antiquíssimo, que acompanha o homem desde remotos tempos, desde o simbolismo telúrico ao religioso. No religião cristã tomou o lugar simbólico do sofrimento e o factual e histórico como objecto usado para condenação à morte do Salvador do Mundo. É o principal símbolo do Cristianismo, segundo a Enciclopédia Britânica.
Na poesia cerebral e culta do poeta argentino Jorge Luís Borges, em que o autor procura inúmeras vezes os arquétipos das coisas, das palavras, da sua cultura enciclopédica, encontramos mais do que uma vez a referência à cruz, no contexto bíblico e referencial do perdão.
Ao usar nos versos seguintes, um conceito ético sobre o perdão, o poeta JLB fez da cruz o veículo pelo qual esse perdão se transmitiu, através do sangue de Jesus e da Sua própria voz de candor, como o poeta lhe chamou:
“ Gracias quiero dar(...) // por las palabras que en un crepúsculo se dijeron / de una cruz a outra cruz”. Tais palavras carregaram a sublimidade do perdão, não apenas ao malfeitor, mas a todos os homens que creram e crêem, na humanidade.
E o mesmo poeta, noutro belíssimo poema, escreve assim, sobre Cristo na cruz (título do poema): “Cristo na cruz. Os pés tocam a terra. // Deixou-nos esplêndidas metáforas / e uma doutrina do perdão que pode / anular o passado.”
De uma cruz a outra cruz a transversalidade universal do perdão para o Mundo.
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