sábado, 9 de janeiro de 2010

Exegese do Prof.Doutor Rui Miguel Duarte ao poema "Os Sapatos de Auschwitz"


Os Sapatos de Auschwitz

Por estes sapatos que tiveram
dentro da noite os pés
arrastou-se a eternidade.

Aonde vão os pés a flutuar?

Subindo uns pelos outros
os sapatos têm cor de cinza
como a cinza dos corpos
que anoitece o ar.

Estes sapatos traspassam
nossa alma
como um rio de névoa
como um rio de lama.

J.T.Parreira


É o poema que dá título ao livro. Um poema que impressiona, pela forma como o poeta (o que não é inédito) põe sob o manto da discrição, da distância e da transfiguração expressiva a expressão do horrível. Aqui, esse horrível daquilo para que a fotografia e o título remetem: sapatos amontoados de judeus mortos no campo de concentração com esse nome de maldição.
Eis uma imagem que se "arrastou" pela "eternidade", da memória dos povos e da imagética, que a fotografia (reproduzida na capa do volume) proporciona, a memória dessa tragédia inominável.
Sapatos que foram calçados "dentro da noite", noite da morte, quiçá, aquela em que ficaram vazios, ou sendo a "noite" todo o tempo em que foram usados pelos seus proprietários, tempo que foi de noite, pois essas vidas estavam condenadas à morte. Os sapatos ganham vida, submetidos a prosopopeia, sobem uns pelos outros, o estático da imagem adquire movimento, na ausência do elemento humano.
Que outra coisa para sugerir a imagem? Eis um exemplo de como o horrível é discretamente não-dito. O poema diz que os sapatos têm cor de cinza, e esta é uma das cores da imagem. E é uma cinza semelhante à "dos corpos".
Esta cinza é, na referência aos corpos, plurirreferencial: como a dos sapatos, é solidária, enquanto cor, com a dos corpos dos proprietários, mas perdendo-se a cor, pois o poeta já não fala de "cor de cinza", mas tão-somente de "cinza".
Torna-se evidente o referente discretamente omisso (mais uma vez): os corpos queimados dos condenados reduzidos a essa matéria. Não podemos fugir da alusão ao que o leitor conhece da História e traz para a leitura do poema. Cinza "que anoitece o ar", uma nuvem de cinza, que podemos imaginar misturada com o fumo dos fornos crematórios.
A discrição e pudor são mais poderosos do que a contenção dos trágicos gregos, pois estes expunham pelo discurso o que ao olhos era vedado ver; no poema há mera sugestão velada nos signos linguísticos, que o leitor tem de descodificar. Mas no fim cede um pouco, ganhando o efeito retórico designado em latim pelo verbo "movere", de mexer e comover as nossas emoções, ao nos traspassarem a alma.
A "névoa" e a lama em rio atravessam as emoções do leitor, deixando-o entorpecido, sem ver distintamente. Esse é o efeito da névoa. A "lama" faz pior: conota uma forte emoção de nojo, de abjecto, de repugnância perante a imundície horrível do referente histórico, que são a forma (discreta) como o poeta acaba por tomar partido e sugerir ao leitor discretamente (ou ao deixar-lhe a oportunidade para tal, se quisermos ser igualmente discretos na exegese) que o tome também. O "nós" contém e implica o poeta como os leitores.

Rui Miguel Duarte

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