domingo, 6 de setembro de 2009

Conto: O homem e a menina

*

Invariavelmente meio dia, lá estava ela, correndo como sempre, como nunca. No céu o sol no seu apogeu na cúpula da atmosfera; na terra um roseiral imenso ladeado por um pasto pontilhado por arvores frutíferas e centenárias, que davam ao lugar um ar de felicidade monótona. Corria, e como corria! A sua necessidade de liberdade era paradoxalmente determinada por uma lei inexorável que rege almas livres. Aquele era o seu momento; e o lugar da sua indispensável solidão junto à natureza na qual se fundia em espontaneidade e singeleza. Que menina linda! Que alegria. Que graça e tamanha vontade de viver em poucos aninhos de vida.

Longe dos estudos e dos cuidados dos seus pequenuchos irmãos, ela se esbaldava em sua hora vaga em alguns entretenimentos que lhe eram oferecidos pela generosidade da Mãe Terra. Hoje perseguia uma borboleta minúscula que a deixou tonta e cansada, mas ontem judiara das formigas deixando-as perdidinhas por apagar o rastro que as guiava. Naquele coraçãozinho dominava uma ânsia visceral e comum a todo ser sensível que abita o incomensurável universo de Deus: a sede de vida e a busca por felicidade. Mas tudo isso se traduzia para ela no simples desejo de ser autônoma e dona de seu destino, ou seja, na vontade de ser Mulher.

Um homem, não tão distante, a observava todos os dias. Morava na encosta de um rochedo num barraco assombroso. Distante de tudo, retirado numa solidão melancólica, avesso aos homens e guardião de um segredo milenar. Com trinta anos descobrira que tinha a capacidade de uma vez na vida, mudar ou transformar o que quisesse. Para ele era uma maldição, posto que todo desejo realizado, acarretaria transtorno no cosmo, e efeitos colaterais na vida de pessoas. Consciente de que, aquele que morresse sem usar o “dom”, quebrava o ciclo do mal, não transferindo a outro, encarou como seu destino, a responsabilidade de enterrar com ele o desumano desejo dos humanos, de interferir na lei natural dos acontecimentos, e no direito pessoal de livre escolha de cada um.

Vinte anos, se passara desde que fugira da sociedade e de suas tentações até que aquela menina lhe inspirou um antigo sonho, sufocado pela sua postura austera diante da vida. Que desejo sórdido! Querer transformar aquela criança numa mulher? Estava ali para redimir a sua raça dos males causados, mas o gênio ruim lhe afligia a carne. Via ele naquele pequeno botão de flor todas as características de uma mulher deslumbrante. Como lhe daria amor, pois no fundo ansiava ser amado também. Mas meu Deus! Privar um ser do direito de aprender por si, de crescer, enfim de sentir a vida a cada dia, a cada instante. Que luta, que dor! Mas estava resignado, mesmo se dilacerando por dentro não sucumbiria.

Numa noite de crises drásticas por desejos reprimidos, em dor indescritível adormecera. Muitos anos depois, com um grito de criança despertou. Correu para socorrer. Algo havia mudado, os seus pés eram mais ligeiros, seu fôlego melhor. Que surpresa! Sua pele rejuvenesceu, voltara a ser menino novamente. Observou que o dia estava lindo como nunca foi antes, não tinha nuvens, mas achou estranho, pois não encontrou o sol. Exausto mas disposto chegou ao lugar, era ela! Espoleta como sempre, cortou o pé na ponta de uma pedra. Num rio que passava por ali, ele lavou os pés dela. A água estancou o sangue e sarou a ferida. Aquele era o Rio da Vida. Brincaram juntos incansavelmente, um sentimento de amor único possuía a alma daquelas crianças. Ate que um ser esplêndido chegou a eles dois e disse: o café da manha está posto, o Eterno está esperando vocês, em sua varanda. Café da manha? Que ironia e senso de humor do anjo! Ali não existiam manhas, porque também não havia noites.

Esdras Gregório
*Autor do livro A Arte dos Sofistas na Pregação Pentecostal (Jeová Nissi Editora, 2008)

Nenhum comentário: