Espartanos
Foi um e-mail de sua
irmã, dando conta da tragédia.
Éramos amigos da época
do Exército, servimos juntos no extinto 3˚BI, em São Gonçalo.
Após os dez meses
regulamentares, dei baixa: planejava abrir o negócio que afinal nunca abri.
Aritana (ele era um
mulato com esse estranho nome de índio tupi) continuou na farda, engajou-se e
chegou a 3˚ Sargento.
Depois de sua baixa,
foi homem de realizar nosso sonho: viajou para Aubagne, na França, e alistou-se
na Legião Estrangeira.
Ainda não contei
porque Aritana, bem encaminhado no Exército Brasileiro, pediu sua baixa. Ele
sempre sonhara ser um soldado na acepção veraz-voraz do termo: queria porque
queria entrar em combate real, dizia mesmo que nascera para combater.
Membro dos Comandos de
Selva no Amazonas, aparentemente chegara onde queria: sabia das constantes e
oficialmente abafadas incursões de membros das FARC colombianas território
brasileiro adentro. Inimigos reais: Aritana precisava, e iria encontrá-los.
Para isso fizera os testes e os extenuantes cursos para servir no Amazonas.
Num estranho maio,
chegou pela manhã a notícia, vinda via rádio de um informante duma tribo aruaque:
dois barcos dos guerrilheiros desciam pelo rio Içá. O Comandante do
Destacamento de Fronteira constituiu um Comando para ir de encontro ao grupo,
mas excluíra Aritana da missão. A isso se seguiu uma discussão infrutífera, um
frutífero soco no queixo do Comandante, um mês de cadeia e um pedido de baixa,
para evitar a expulsão com desonra.
*
* *
Aritana chegou à Legião
sonhando em combater. Onde fosse: operações da OTAN, Senegal, Chade, em Roma,
Jerusalém ou no inferno.
No último dia 14,
ainda no campo de treinamento da Legião, em Castelnaudary, meu amigo espartano foi
atingido acidentalmente pelo disparo de um fuzil bullpup FAMAS, arma regulamentar do Exército Francês. Tiro
disparado por um recruta argelino.
Morreu Aritana, o
melhor soldado que vi, e de toda a galera do quartel, ou melhor, de todos os
homens que conheci na vida, o melhor num combate corporal, sim, o melhor na
porrada. Um gladiador nato, clássico. Um pedaço de aço, ou como eu disse, um
espartano. Mas seus únicos combates na vida foram as lutas ferrenhas em busca
de uma Luta, de um Sonho que sempre lhe fugiu; e nossas saudosas mas
geopoliticamente irrelevantes brigas de bar.
Mas por que relato
sobre Aritana, por que sua história tem tirado meu sono nesses dias?
Desde que me dediquei
à obra de Deus, isso lá pelos idos de 1999, pouco antes de minha baixa, eu
nutro o sonho de tornar-me também um diferente, um precioso e especializado
tipo de soldado: um missionário. Percebi em algum momento que há uma e uma
única causa por que combater, e qual é a verdadeira milícia e finalmente qual é
a ponta de lança desta milícia. E tenho investido em cursos e livros, na consagração
de minha vida, tarefas na igreja, do microfone à vassoura, da pá ao púlpito. E serviços
comunitários em meus dias de folga, na intenção de adestrar meu espírito e meu
corpo na arte de servir.
E tenho encontrado a
mesma resposta, as mesmas variações floreadas em que um ‘não’ alcança
metamorfosear-se: “Nossa igreja não tem condições de enviar missionários”;
“Você é louco? Vai morrer lá!”; “Mas e seu emprego, vai deixar um emprego tão
bom para aventurar-se? Que desperdício, menino!”; “Ainda não é o tempo de
Deus”; “Você não está capacitado”; “Ano que vem vamos entrar num propósito de
oração, para Deus nos dar a direção sobre isso, irmão Sammis.”
Tenho pensado sem
parar em Aritana. Como ele, tenho há anos perseguido um sonho, tenho há anos
visto ele ser-me negado, postergado, indeferido. O Universo não conspira contra
mim, o Universo não conspira: tudo corre pela conta de Satanás, aliado à
idiotice humana, esse outro obscuro deus, que por tanto e tantos responde.
Não, eu não vou morrer
sem ver o campo que o Senhor me direcionou. Não vou morrer aqui no solo cristão
de um país cristão servindo principalmente a cristãos ou a uma maioria de
renitentes já enfadados de ouvir a mensagem. Ainda que ela deva continuar a ser
despejada a tempo e fora de tempo, como o bombardeio da luz do sol que não se
esgota e jamais murmura, prefiro e vou bombardear solo virgem, extensões de
trevas que nunca viram luz ou arado. Devo e vou morrer num lugar onde precisam
de quem morra, onde desesperadamente anseiam por uma migalha da mesa do que
aqui sobeja.
Vendi minha casa. Moro
sozinho e ainda não falei com minha família, mas isso é o de menos. O valor
levantado permitirá que eu viva no campo por quase dois anos; com essa quantia
em mãos a Agência Missionária resolveu aceitar-me. É uma Agência
interdenominacional, sem condições de sustentar missionários. Apenas assessora,
ajuda, pastoreia os pastores que
envia. A quantia é muito mais do que muitos dos que partem dispõem, muito mais
do que aquilo, entre realidades e as sempre muitas promessas, com que podem
contar. E para além disso, não existe a fé? É hora de dar um salto
kierkegaardiano, é tempo de experimentar essa arma, para além dos pacatos ensaios
no simulador que a vida cristã aqui tem sido.
Não, eu não vou morrer
boicotado pelos generais, eu não vou morrer ferido num quartel, eu não vou
morrer quando prestes a lançar-me; não vou morrer sem experimentar o verdadeiro
combate. Parto ainda esta semana.
Nosso velho sonho de
guerra, Aritana. De alguma maneira vou realizá-lo.
Sammis Reachers
Do livro O Pequeno Livro dos Mortos.
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